19.1.10

cântico III :: Cecilia Meireles

*
Não digas onde acaba o dia.
Onde começa a noite.
Não fales palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a Terra,
Onde termina o céu
Não digas até onde és tu.
Não digas desde onde é Deus.
Não fales palavras vãs.
Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa, completamente silencioso,
Até a glória de ficar silencioso,
Sem pensar.

***

bibliografia: MEIRELES, Cecília. Cânticos. São Paulo: Moderna, 2001.

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18.1.10

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chega o momento
em que não há diferença entre
o falar e o calar


*

9.1.10

odara :: caetano veloso

*



Deixa eu dançar pro meu corpo ficar odara
Minha cara minha cuca ficar odara
Deixa eu cantar que é pro mundo ficar odara
Pra ficar tudo jóia rara
Qualquer coisa que se sonhara
Canto e danço que dara

***

odara :: nome hindu que significa paz, tranquilidade!
hoje é sábado, existe dia melhor para dançar e ficar odara?

***

7.1.10

Ver


eduardo galeano
(tradução livre :: patrícia mc quade)


( Blue Star :: 1927 :: Joan Miró)


Nos campos de Salto, aquele capataz, já com idade avançada, tinha fama de ver o que ninguém via.

Carlos Santalla lhe perguntou, com todo respeito, se era verdade o que diziam: que ele via o invisível porque tinha mente grande. Tão grande era sua mente, diziam, que não cabia no crânio e sentia dor de cabeça.

O velho gaúcho riu a gargalhadas:

— Eu, o que posso dizer é que sou muito curioso, e que tenho sorte. Quanto mais se encurta a minha vista, mais vejo.

Carlos tinha nove anos quando escutou isso. Quando já ia completar um século de vida, ainda se lembrava. Os anos também tinham encurtado a sua vista, para que visse mais.

***

bibliografia: GALEANO, Eduardo. Bocas del tiempo. Buenos Aires : Catálogos, 2004, p. 146.

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5.1.10

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*
à medida que eu mudo
até um arco-íris posso ver
num dia seco de sol.


*

Passagem do ano :: de Carlos Drummond de Andrade

*
O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor [da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, [doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o [clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do [acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos [séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras [espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

***

ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 2001.


esse livro foi o presente de natal que eu me dei entre outros! talvez seja o livro mais político de Carlos Drummond de Andrade. foi lançado no final da segunda guerra mundial, em 1945. traz uma poesia cheia de lirismo e vigor marcada por aquele momento histórico do qual Drummond tanto se martirizou em tentar entender: para que tanta destruição? por que tanto ódio? para que as fábricas de mortos? esse poema em especial, que eu li hoje de manhã, me fez cair a ficha finalmente de que estamos em outro ano e que mais um ciclo se finalizou para que irremediavelmente outro comece. é assim que funciona a vida e é assim que colamos os cacos de nossa história para novamente nos reconhecer :: quem somos e o que viemos fazer aqui na terra :: ainda que existam fissuras no espírito por corrigir, ainda que o corpo esteja gasto de sentir. sentir o que? isso pouco importa! até a felicidade já traz em si os sinais de tristeza que por certo virá. e que estajamos fortes para enfrentá-la e para ciclicamente receber a felicidade de braços abertos de novo, com um copo de cerveja na mão e um sorriso maroto esboçado nos lábios, para festejá-la entre os verdadeiros amigos, em qualquer dia em que ela reapareça, nesse novo ano que recomeça.

muito axé em 2010!

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2.1.10

*

giro 360 graus e ninguém se vê
deserto à vista
silêncio ecoa gargantas
ouvidos moucos de grito e vazio
rochas de bilhões de anos se revoltam em grãos
instante do Eterno

ninguém surge aspirando oásis
antes, veste o vestido de tempo e tempestade

.a.r.e.i.a.

ninguém desenha pedras:
o sol se equilibra em dunas
sede ao som e ária que venta
dunas morosas e dengosas
de um lado a outro e vão
fendas
acariciadas pelas mãos pequeninas do sol
afora dunas da cauda do vestido que baila

cactos bordados
tatos espinhos

ninguém nos espinhos
mata-se sede
fere-se ranhuras de rochas
o sol acalenta

a seiva o caule
a flor espantada e carmim
enigma de morte
- irmãs gêmeas -
esfinge de vida

odor ocre
cor
e um calafrio

ninguém só, veja!
a aridez
o sol escaldante
espera-se o nascer inesperado
e o cacto primevo

espinhos verão
flores não tardarão
veja!
ambos adornam o vestido
suco cáustico embriaga a sede

ninguém abre a porta do deserto
para que outros vejam

as dunas os cactos as flores os espinhos as pedras
ninguém
veja!
a cauda do vestido que baila
o sol o vento
tudo
ao som de uma ária