29.8.10

:: O inferno de bosch e graciliano ramos ::

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O inferno :: de Hieronimus Bosch :: sec. xv

"Súbito ouvi uma palavra doméstica e veio-me a idéia de procurar a significação exata dela. Tratava-se do inferno. Minha mãe estranhou a cuirosidade: impossível um menino de seis anos, em idade de entrar na escola, ignorar aquilo.

O inferno era um nome feio que não devíamos pronunciar. Mas não era apenas isso. Exprimia um lugar ruim, para onde as pessoas mal-educadas mandavam outras, em discussões.

Instada, condescendeu. Afirmou que aquela terra era diferente das outras. Não havia lá plantas, nem currais, nem lojas, e os moradores, péssimos, torturados por demônios de rabo e chifres, viviam depois de mortos em fogueiras maiores que as de S. João e em tachas de breu derretido.

Fogueiras de S. João eu conhecia. Tinha-se feito uma diante da casa.

Também conhecia o breu derretido.

(...) como admitir que pessoas resistissem muitos anos a barricas cheias de breu derramadas em tachas fundas, sobre fogueiras de S. João?

— Eu queria saber se a senhora tinha estado lá.
— Os padres estiveram lá?

Minha mãe estragara a narração com uma incongruência. Assegurara que os diabos se davam bem na chama e na brasa. Desconhecia, porém a resistência das almas supliciadas. Dissera que elas suportariam padecimentos eternos. Logo insinuara que depois de estágio mais ou menos longo, se transformariam em diabos.

Reclamava uma testemunha, alguém que tivesse visto diabos chifrudos, almas nadando em breu. Ainda não me havia capacitado de que se descrevem perfeitamente coisas nunca vistas.

— Os padres estiveram lá? tornei a perguntar.

Minha mãe irritou-se, achou-me leviano e estúpido. Não tinham estado, claro que não tinham estado, mas eram pessoas instruídas, aprendiam tudo no seminário, nos livros. Senti forte decepção: as chamas eternas e as caldeiras medonhas esfriaram."

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RAMOS, Graciliano. Infância. Record: Rio de Janeiro, 1980. p. 78-80.

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27.8.10

&

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Quero voltar! Não sei por onde vim…
Ah! Não ser mais que a sombra duma sombra
Por entre tanta sombra igual a mim!

(Florbela Espanca)

22.8.10

desconstruindo medusa

*
dizem:

os homens são de Marte
e
as mulheres de Vênus

!

mas me explique,
se possível for,

pra que guerras e armas
e não só prazer e amor

?

..

Furtos e rapinas

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eduardo galeano
(tradução livre :: patrícia mc quade)

As palavras perdem seu sentido, enquanto perdem sua cor o mar verde e o céu azul, que foram pintados gentilmente pelas algas que lançaram oxigênio durante três bilhões de anos.

E a noite perde suas estrelas. Já há cartazes de protestos pregados nas grandes cidades do mundo:

Não nos deixam ver as estrelas.

Assinado: As pessoas.

E no firmamento apareceram já muitos cartazes que clamam:

Não nos deixam ver as pessoas.

Assinado: As estrelas.

***

bibliografia: GALEANO, Eduardo. Bocas del tiempo. Buenos Aires : Catálogos, 2004, p. 249.

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site :: arnaldo antunes




para quem gosta e quer conhecer mais.

http://www.arnaldoantunes.com.br/

leitura e curtição visual recomendada.

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Os Buracos do Espelho

Arnaldo Antunes
O Globo: 27/07/2009

o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar aqui
com um olho aberto, outro acordado
no lado de lá onde eu caí

pro lado de cá não tem acesso
mesmo que me chamem pelo nome
mesmo que admitam meu regresso
toda vez que eu vou a porta some

a janela some na parede
a palavra de água se dissolve
na palavra sede, a boca cede
antes de falar, e não se ouve

já tentei dormir a noite inteira
quatro, cinco, seis da madrugada
vou ficar ali nessa cadeira
uma orelha alerta, outra ligada

o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar agora
fui pelo abandono abandonado
aqui dentro do lado de fora

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19.8.10

conversa de caleidoscópios:

— eu bem-te-vi!
— eu também, meu bem-te-vi, te-vi!!!

5.8.10

O Evangelho segundo Jesus Cristo :: de Saramago

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Não é preciso mencionar o tema desse romance de Saramago. O título por si já conta tudo e me estender em detalhes seria redundante demais diante de uma história que já é conhecida por nós desde antes de nos conhecermos por gente neste mundo cristão.

A novidade consiste na invenção de Saramago em nos apresentar um filho de Deus humanizado desde a sua concepção até a sua morte: rebelde, teimoso, frágil, corajoso, pretensioso, arrogante, mas antes de tudo amoroso. Como todos os mártires são personagens inventados, Jesus Cristo se nos apresenta como um mártir planejado meticulosamente pela mente fria de um Deus tirano que não conhece as dores e os prazeres humanos, mas que tem em comum um sentimento único compartilhado com todos os seres racionais criados por ele: o desejo de poder sobre a mente e a vontade dos seres humanos.

Em um dos capítulos finais – numa conversa entre Deus, Jesus e o Diabo em alto mar – não é difícil fazer uma associação de Deus com a sanha imperialista dos romanos, de Napoleão, Hittler, Stalin, ou mesmo Georg W. Bush (!?). Para expandir sua fama sobre a Terra, e consequentemente o seu poder, Deus justifica o holocausto de incontáveis vidas em seu Nome ao longo da sangrenta Era cristã com a célebre frase anacrônica de Maquiavel: “Os fins justificam os meios”.

Ética bélica para “honra e glória de seu Nome”: pessoas de diferentes idades e sexos serão torturadas, queimadas, crucificadas, devoradas por feras, apedrejadas, estupradas, degoladas, açoitadas, dessangradas, mutiladas, afogadas, humilhadas, esfaqueadas, flechadas, etc, etc, etc. eis a revelação feita a Jesus momentos antes de seu martíro.

Não quero aqui revelar cada surpresa, cada ironia que o romance resguarda, mas é importante pontuar que o autor consegue, numa engenhosidade estética e pelos meandros de uma narrativa inusitada aos olhos de qualquer herdeiro da cultura cristã, dessacralizar os evangelhos do novo testamento ao preencher as lacunas que as escrituras não explicam e ao reformular os moldes da história humana tão bem aprendida durante nossa vida escolar. Um exemplo concreto na narrativa, no primeiro caso, seria o que aconteceu na vida de Jesus quando este ainda era adolescente e como ele se tornou homem feito, fato oculto nas escrituras; no segundo caso, quando Deus conta o destino da humanidade, a pedido de Jesus, se caso ele cumprisse os desígnios da profecia e aceitasse morrer cravado na cruz se tornando o salvador de todos os pecadores que arrependidos se convertessem ao cristianismo, seja judeus ou gentios. É a "salvação" estendida a todos os povos da Terra, além de seu pretensioso povo escolhido.

Se Saramago consegue, em sua inventividade, romancear toda a vida de Jesus, ele não deixa de abrir outras lacunas para que nós, leitores, possamos preenchê-las com indagações sobre: Quem é Deus? Quem é o Diabo? O que é a verdade? Qual a função da culpa? Qual é a dor que mais nos atormenta? Assim, Saramago leva o leitor a reinterpretar por própria conta e risco uma versão particular da história do filho do homem aqui na terra.

E para mim, leitora que tem os olhos e o coração voltados para o amor incondicional, o clímax da narrativa não está na morte de Jesus sendo crucificado, mas sim no milagre do amor recíproco de Jesus de Nazaré por Maria de Magdala. A lealdade, a cumplicidade, a compreensão mútua por diversas vezes me emocionaram e guardo de memória uma das inúmeras declarações de amor que se fazem por si e pelo outro:

“Jesus foi juntar-se aos discípulos, e Maria de Magdala foi com ele, Olharei a tua sombra se não quiseres que te olhe a ti, disse-lhe, e ele respondeu, Quero estar onde a minha sombra estiver, se lá é que estiverem os teus olhos”. (grifo meu)

Não tem jeito, eu sou de fato uma romântica irremediável ;)

E quem nega seu próprio romantismo, é muito mais romântico que eu!

***
posologia para a leitura:
siga o pulso da narrativa que altera seu ritmo
à medida que o amor de Jesus
por Maria de Magdala e pela humanidade aumenta.


SARAMAGO, José. O Evangelho segundo Jesus Cristo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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