21.10.12
Amor Feliz
Amor feliz. Será normal,
será sério, será útil? –
que tem o mundo a ver com duas pessoas
que não vêem o mundo?
Erguidos ao seu céu sem mérito nenhum,
os melhores entre milhões e convencidos
que assim tinha de ser – a premiar o quê? Nada;
de algum ponto cai a luz –
e porquê logo sobre estes e não outros?
Ofenderá isto a justiça? Sim.
Perturbará os princípios estabelecidos com cuidado?
Derrubará do seu púlpito a moral? Perturba e derruba.
Olhem-me bem estes felizardos:
se ao menos se mascarassem um pouquinho,
fingissem melancolia dando assim algum ânimo aos amigos!
Ouçam bem como se riem – é um insulto.
A linguagem que usam – entendível, pelos vistos.
E aquelas cerimónias, etiquetas,
obrigações rebuscadas um para com o outro –
parece mesmo um acordo nas costas da humanidade.
É difícil até de prever no que daria
se um tal exemplo pudesse ser seguido.
Com que é que poderiam contar as religiões, a poesia,
de que nos recordaríamos, de que desistiríamos,
quem quereria pertencer ao círculo?
Amor feliz. Assim terá que ser?
Tacto e bom senso mandam omiti-lo
como a um escândalo nas altas esferas da Existência.
Magníficas crianças nascem sem a sua ajuda.
Nunca por nunca ele poderia povoar a terra
já que tão raro é acontecer.
Deixem que quem não conheceu o amor feliz
afirme que não há amor feliz.
Com esta crença mais leve lhes será tanto viver como morrer.
SZYMBORSKA, Wislawa. Paisagem com grão de areia,
Trad. Júlio Sousa Gomes. Relógio d’Água: Lisboa, 1998.
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