“E é porque amo as pessoas e amo o mundo,
que eu brigo para que a justiça social se implante antes da caridade”.
Paulo Freire
Quem ainda não conhece a história da ocupação Dandara!? As versões apresentadas são muitas quando o tema é levantado em rodas de conversas e não conseguimos ir muito além do senso comum se nos mantivermos do lado de fora do problema de moradia dessas pessoas. Ao se tentar conhecer essa realidade de longe, através de textos, fotos e vídeos produzidos pelas Brigadas Populares, artigos escrito por apoiadores religiosos e intelectuais disponibilizados na internet e, principalmente, reportagens em jornais da grande mídia, corre-se o risco de conhecer apenas uma parte dessa história. O volume de informações que circula pela internet e imprensa não é suficiente para alguém se posicionar de forma crítica e com justiça, livre do juízo de valor de uma cultura submissa à propriedade privada e obediente aos grandes senhores de terras, herança que carregamos como fardo desde as capitanias hereditárias. A grande mídia, então, dificulta e muito o nosso acesso à verdade, pois qualquer criança sabe o quanto ela distorce e manipula as informações em defesa das grandes corporações de ordem privada. Para encontrar a verdade dessa história, é preciso ir até a Comunidade, olhar nos olhos de sua gente, comunicar com as crianças através de sorrisos e acenos, conversar com os líderes comunitários, visitar as casas das famílias, participar dos eventos que mobilizam toda a comunidade. Ou seja, o caminho mais garantido é ver com os próprios olhos e sentir com o coração a realidade de todos ali. Se esses passos forem seguidos com o coração sensível e o olhar crítico, não é difícil chegar a esta conclusão: Apesar dos desafios, a Comunidade Dandara é uma Lição de Cidadania, um exemplo vivo da força do povo quando este se posiciona de forma unida e consciente de seus direitos constitucionais e mobilizado no cumprimento de seus deveres sócio-políticos.
Quando lá chegamos, não somos nós quem ensina aos moradores desta ocupação o que são civilidade e qualidade de vida. Eles não precisam de lições ou caridade. São eles os que nos acolhem com afetividade e nos mostram que já são pessoas solidárias, e por isso civilizadas, e que constroem tijolo por tijolo o sonho de uma qualidade de vida para suas famílias, atitudes que tem como pilar de sustentação “a união faz a força”.
Explico:
Dandara possui hoje cerca de 950 famílias que vivem num terreno ocupado no bairro Céu Azul, Belo Horizonte, desde 2009. No primeiro dia de ocupação havia 150 famílias. No dia seguinte esse número subiu para mais de 900. Hoje conta com mais de 5000 pessoas. Ângela, uma das lideranças da comunidade, informou que vieram pessoas de muitos lugares do Brasil atraídas pela notícia de ocupação divulgada na grande mídia, mas garantiu que a maioria delas veio dos arredores de Beagá mesmo: moradores de rua, trabalhadores da construção civil, empregadas domésticas, mães solteiras, pensionistas e aposentados, prestadores de serviço, incluindo suas crianças, adolescentes e idosos. Todos compartilhando da mesma dificuldade econômica que lhes apresentava apenas duas escolhas: ou pagavam o aluguel, ou compravam o alimento para o sustento da família. Como escolher entre dois direitos tão elementares para a sobrevivência de qualquer ser humano? Onde está o Estado que não cumpre com seu dever de garantir esses direitos constitucionais de moradia e alimentação às pessoas de pouco (ou nenhum) recurso econômico? O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra foi a primeira organização política que ajudou essas pessoas a ocuparem o terreno de forma organizada e democrática. Como o MST não atua diretamente em áreas urbanas, essa ajuda de apoio político e burocrático passou a ser feito com êxito pelas Brigadas Populares, como apoio direto de Frei Gilvander, líder religioso, e a advogada popular doutora Rosário. Estes dois últimos se destacam por ajudarem em causas políticas em favor dos excluídos sociais.
Desde então um intenso trabalho de conscientização sócio-política começou a ser feito. Reuniões semanais foram organizadas a fim de discutirem quais seriam os objetivos da ocupação, que modelo de comunidade adotariam e como seria criado o planejamento de desenvolvimento social do local a partir do envolvimento direto de todos na construção dessa história. Os problemas enfrentados desde então foram muitos, começando pelo descaso da prefeitura em reconhecer o direito básico à moradia e qualidade de vida da população menos favorecida economicamente, seguido pelos atos coercitivos da Construtora Modelo – dona do terreno que se encontrava desde então abandonado e que deve milhões em impostos atrasados à prefeitura –, passando pela visão estereotipada da mídia que potencializa posicionamentos preconceituosos da opinião pública e dos moradores do bairro Céu Azul, e por fim o assédio moral de pessoas com espírito oportunista que tentaram insistentemente se infiltrar na comunidade para se valer da luta de conquista pela moradia. Todos esses problemas foram e continuam sendo driblados pela comunidade, pelas Brigadas Populares e apoiadores da ocupação. Contudo é o preconceito o fator que mais ofende a dignidade dos moradores de Dandara.
Para fazer frente às forças contrárias ao desenvolvimento sócio-político, professores e estudantes dos cursos de engenharias, arquitetura e urbanismo da UFMG se disponibilizaram em criar o projeto de planejamento urbanístico do terreno junto aos moradores com a supervisão das Brigadas Populares. A topografia do terreno foi o ponto central do planejamento. Considerando os aspectos da legislação urbanística de Belo Horizonte, foi levantado um estudo da topografia local, do regime hidrográfico e da vegetação existentes antes de planejarem a ocupação do solo e seu entorno. Assim, preservaram as árvores e nascentes de água que lá existem obedecendo às leis ambientais, abriram ruas largas que foram definindo o mosaico ordenado de lotes delimitados por cercas e suas casas – enquanto barracas de lonas desaparecem, pequenas casas de alvenaria vão surgindo. A Copasa disponibilizou um ponto de abastecimento de água, mas foi a força do trabalho comunitário que levou essa água a todas as casas. A Cemig se recusou em instalar luz em Dandara, os moradores foram obrigados a fazer “gatos” para manterem a segurança noturna das ruas e o mínimo de conforto nas casas. Em mutirão levantaram postes de madeira recolhida em entulhos, compraram fios e lâmpadas, quando eletricistas da própria comunidade orientaram os moradores na instalação elétrica garantindo o serviço de iluminação para todos. Tudo pensado e construído através de mutirões, senso de coletividade, espírito que reina na comunidade.
O resultado é de encher os olhos: a dignidade estampada no rosto de cada morador que apresentam com orgulho seus jardins de flores e pequenos arbustos em meio a hortaliças e parreiras de maracujá que colorem os quintais de suas casas. Espaços públicos foram reservados para a construção de uma igreja ecumênica – sim, ali todas as crenças são respeitadas –, de praças e do Centro Comunitário que já estão em vias de execução. José Geraldo da Silva, 54 anos, um dos coordenadores dos grupos e sua esposa, Tânia Cristina dos Santos, 45 anos, dona de casa e faxineira, contam entusiasmados sobre os projetos idealizados para o embelezamento de Dandara: horta comunitária, plantio de flores em canteiros e praças e arborização das ruas definem uma concepção refinada de comunidade que essas pessoas almejam para suas famílias e moradores.
Hoje, ao olhar a paisagem Dandara, é possível vislumbrar ali um esforço sobre-humano que prima o seu desenvolvimento social. Depois de enfrentar a resistência das escolas vizinhas em receber a comunidade, todas as crianças de Dandara estão matriculadas e são frequentes às aulas; podem escolher entre oficinas de sensibilização musical com aulas de canto e flauta, jogos de capoeira ou oficinas de artesanato com materiais reciclados como forma de preencher o tempo livre, tudo isso oferecido dentro da comunidade; todas são assistidas periodicamente pela Pastoral da Criança que acompanha o quadro de desenvolvimento infantil das crianças e oferece às famílias um composto alimentar que combate a desnutrição e a anemia – vale ressaltar que as crianças de Dandara estampam saúde em cada sorriso e travessura. Os jovens, por sua vez, podem participar das reuniões na associação comunitária e aprendem na prática como construir uma consciência sócio-política e de responsabilidade civil; recebem palestras de funcionários da saúde pública – a convite do grupo de mulheres Dandara – que auxiliam nas dúvidas recorrentes da própria idade como: orientação sexual, métodos anticonceptivos, educação preventiva às drogas, saúde e higiene pessoal. Os idosos são assistidos pelos próprios membros da comunidade em qualquer dificuldade, contribuem para a saúde da Comunidade com seus conhecimentos de ervas medicinais que cultivam no próprio jardim, podem frequentar as aulas de educação para jovens e adultos e são respeitados em seus direitos e por sua experiência de vida.
Dandara possui 19 coordenadores que cuidam dos 9 grupo em que a comunidade se divide. Essa divisão visa uma melhor organização do espaço público, levando em consideração os interesses e problemas de cada grupo e seus moradores. Cada grupo conta com mais ou menos 110 famílias. Esses coordenadores são moradores da comunidade e foram eleitos através do voto direto. A maioria desses coordenadores são mulheres, o que atribui à ocupação um caráter de organização sócio-política matriarcal, e por isso de poder horizontal. Ali, nenhuma ordem é acatada de cima para baixo como pressupõe a nossa sociedade patriarcal, tudo é decidido coletivamente no Centro Comunitário, de forma democrática e participativa.
As funções desses coordenadores são muitas, desde discutir nas reuniões semanais na Comissão dos Moradores os problemas solicitados por cada grupo, até o de garantir a harmonia nas relações sociais e das pessoas com o espaço público. Ajudam também nas necessidades básicas de alguma família que enfrenta dificuldades. Se a pessoa responsável por sua família se encontra desempregada, os coordenadores arrecadam dentro do próprio grupo ajuda em alimentos para o seu sustento. O desemprego é combatido também com a solidariedade, amigos e vizinhos dão notícias de vagas que surgem em seus trabalhos. Ângela Fagundes Pinto, 52 anos, uma das coordenadoras do grupo 5, se orgulha em contar que “às cinco da manhã as ruas de Dandara se transformam em formigueiros de pessoas saindo de suas casas para o trabalho”. É assim que funciona a grande família Dandara, juntos vencem os desafios de nossa organização econômica excludente. Juntos eles fazem a diferença e a inclusão social é uma realidade entre eles!
Os coordenadores também cuidam da disciplina nos grupos e interferem em casos de violência doméstica, completamente proibida sem nenhuma exceção à regra, e mediam conflitos entre vizinhos. O grupo da limpeza desempenha um papel importante, pois garante a qualidade da saúde pública na comunidade. Ali não entram os caminhões de lixo por determinação da prefeitura. Em cada uma das 4 entradas foram colocadas lixeiras coletivas. Os moradores caminham até elas todos os dias e depositam seus lixos domésticos. Os coordenadores auxiliam os cidadãos a manterem ruas e quintais limpos e fiscalizam diariamente se todos cumprem com as leis da limpeza. Quem visita pela primeira vez a comunidade fica admirado com o asseio de todo espaço público. O grupo de mulheres, além de convidar enfermeiras de postos de saúde dos bairros vizinhos para dar palestras educativas, ensina práticas para manter a higiene doméstica e cuidados para com a saúde da família. Os donativos também são por elas recebidos e distribuídos conforme as necessidades de cada um. Roupas e calçados são entregues a quem mais precisa e os alimentos são estocados para os casos de maiores necessidades das famílias.
Apesar de toda essa autonomia construída com muito suor, persistência e determinação, a comunidade enfrenta os problemas da falta de saneamento básico e todas as propostas alternativas para a resolução desse problema serão muito bem vindas. O cerco do poder público por si só já denuncia o perfil de nossa política, uma administração municipal elitista que não reconhece o esforço de crescimento social de toda uma comunidade que luta por seus direitos já prescritos na constituição brasileira.
O espírito de Dandara resiste nessa comunidade! Para fazer jus ao nome escolhido para a ocupação, essa Dandara do séc. XXI continua perseguindo o ideal de liberdade e justiça social. Dandara não mede esforços quando está em jogo a segurança de seus filhos e a eliminação do inimigo. Desde 2009 Dandara vence todas as batalhas contra o cerco do poder político representativo que desconsidera as necessidades básicas de populações menos favorecidas economicamente. Dandara enfrenta com coragem a sanha capitalista da Contrutora Modelo e desafia seu sistema de mercantilização da habitação. Dandara é a síntese de uma nova ordem social, política e econômica. É a força feminina que cuida das crianças, ampara os idosos, provê as necessidades básicas de todos, luta por seus direitos e não desiste diante das dificuldades. Dandara é a sublevação de todos os sonhos de civilização onde o bem comum está em primeira instância. Dandara não pode ser mais uma vez massacrada na história.
Despejo não, por Dandara eu também luto!
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