31.5.13

degustação

...para além do toque existe um som,
à extremidade do olhar um cheiro,
às pontas dos dedos um desejo...


A Espantosa Realidade das Cousas

A espantosa realidade das cousas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.
Hei de escrever muitos mais. Naturalmente.

Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer cousa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.

Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Heterónimo de Fernando Pessoa

26.5.13

Jardim de Epicuro

gestos de flor de folhas,
de seu cabelo, sua língua de fogo
e me distancio da polis turbulenta

gestos do corpo da mente
de sua carne calma, fogo dançante
me explique o mundo
clorofilado inanimado úmido
de carne de água sem nervos
carne toda em carne viva
coração
outra razão
semente

o caráter do fogo
as veias de água
tudo onde se adivinha:
os mesmos gostos dos extremos
carambola graviola pinha
esta natureza faminta

jardim de acácias, lírios muitos grilos
farfalhar das folhas secas, tapete de estações
quantas borboletas!
onde o fio do tempo se alonga ao infinito
onde a aranha tece a finitude de um século
e um sopro de tento que tudo rompe
onde dois sois persistem dia
onde Vênus roga noite
a primeira estrela

(gosto de cada gosto
cheiro de cada cheiro
toque que tange alma)
e o corpo se acalma...

qual labareda!
quem dele se aproxima
e adentra
e mergulha
e se encontra
e se perde
e se floresce
e se pergunta:

e se Margarida?

qual jardim brota na palma!

22.5.13

na insistência de existir...
às vezes dexisto
outras rexisto.

21.5.13


... e que fique tudo o que foi dito pelo maldito fado,
pesado em sua estúpida vaziez,
tudo aquilo que as palavras não dão conta de dizer...

12.5.13

o fogo de Hilda Hilst

Do desejo (V)

Se eu disser que vi um pássaro
Sobre o teu sexo, deverias crer?
E se não for verdade, em nada mudará o Universo.
Se eu disser que o desejo é Eternidade
Porque o instante arde interminável
Deverias crer? E se não for verdade
Tantos o disseram que talvez possa ser.
No desejo nos vêm sofomanias, adornos
Impudência, pejo. E agora digo que há um pássaro
Voando sobre o Tejo. Por que não posso
Pontilhar de inocência e poesia
Ossos, sangue, carne, o agora
E tudo isso em nós que se fará disforme?

Da noite (I)

Vi as éguas da noite galopando entre as vinhas
e buscando meus sonhos. Eram soberbas, altas.
Algumas tinham manchas azuladas
E o dorso reluzia igual à noite
E as manhãs morriam
Debaixo de suas patas encarnadas.

Vi-as sorvendo as uvas que pendiam 
E os beiços eram negros, e orvalhados.
Uníssonas, resfolegavam.

Vi as éguas da noite entre os escombros
Da paisagem que fui. Vi sombras, elfos e ciladas.
Laços de pedra e palha entre as alfombras
E vasto, um poço engolindo meu nome e meu retrato.

Vi-as tumultuadas. Intensas.
E numa delas, insone, a mim me vi.

Do desejo (VIII)

Se te ausentas há paredes em mim.
Friez de ruas duras
E um desvanecimento trêmulo de avencas.
Então me amas? te pões a perguntar.
E eu repito que há paredes, friez
Há molimentos, e nem por isso há chama.
DESEJO é um Todo lustroso de carícias
Uma boca sem forma, um Caracol de Fogo.
DESEJO é uma palavra com a vivez do sangue
E outra com a ferocidade de Um só Amante.
DESEJO é Outro. Voragem que me habita.

Alcoólicas (I)

É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d'água, bebida. A vida é líquida.


in HILST, Hilda. Do desejo. São Paulo: Globo, 2004

5.5.13

Alejandra Pizarnik

Caminhos do espelho

tradução livre :: patrícia mc quade

I
E sobre tudo olhar com inocência. Como se não passasse nada, o que é certo.

II
Mas quero olhar você até que seu rosto se afaste de meu medo como um pássaro da margem afiada da noite.

III
Como uma menina de giz rosado no muro muito velho subitamente apagada pela chuva.

IV
Como quando se abre uma flor e revela o coração que não tem.

V
Todos os gestos de meu corpo e de minha voz para fazer de mim a oferenda, o ramo que abandona o vento no limiar.

VI
Cubra a memória de sua cara com a máscara de quem você será e assuste a menina que você foi.

VII
A noite dos dois se dispersou com a névoa. É a estação dos alimentos frios.

VIII
E a sede, minha memória é da sede, eu embaixo, no fundo, no poço, eu bebia, lembrança.

IX
Cair como um animal ferido no lugar que seria de revelações.

X
Como quem não quer a coisa. Nenhuma coisa. Boca cosida. Pálpebras cosidas. Esqueci.

Dentro o vento. Tudo fechado e o vento dentro.

XI
Ao negro sol do silêncio as palavras se douravam.

XII
Mas o silêncio é certo. Por isso escrevo. Estou só e escrevo. Não, não estou só.

Há alguém aqui que treme.

XIII
Ainda se digo sol e lua e estrela me refiro a coisas que me sucedem. E o que desejava eu?

Por isso falo.

XIV
A noite tem a forma de um grito de lobo.

XV
Delícia de perder-se na imagem pressentida. Eu me levantei de meu cadáver, eu fui em busca de quem sou.

Peregrina de mim, fui até a que dorme num país ao vento.

XVI
Minha caída sem fim a minha caida sem fim onde ninguém me esperou pois ao olhar quem me esperava

não vi outra coisa senão a mim mesma.

XVII
Algo caía no silêncio. Minha última palavra foi eu mas me referia à aurora luminosa.

XVIII
Flores amarelas constelam um círculo de terra azul. A água freme cheia de vento.

XIX
Deslumbramento do dia, pássaros amarelos na manhã. Uma mão desata trevas, uma mão arrasta

a cabeleira de uma afogada que não cessa de passar pelo espelho. Voltar à memória do corpo,

tenho voltado aos meus ossos em duelo, tenho de compreender o que disse  minha voz.


***

Caminos del espejo


I
Y sobre todo mirar con inocencia. Como si no pasara nada, lo cual es cierto.

II
Pero a ti quiero mirarte hasta que tu rostro se aleje de mi miedo como un pájaro del borde
filoso de la noche.

III
Como una niña de tiza rosada en un muro muy viejo súbitamente borrada por la lluvia.

IV
Como cuando se abre una flor y revela el corazón que no tiene.

V
Todos los gestos de mi cuerpo y de mi voz para hacer de mí la ofrenda, el ramo que abandona
el viento en el umbral.

VI
Cubre la memoria de tu cara con la máscara de la que serás y asusta a la niña que fuiste.

VII
La noche de los dos se dispersó con la niebla. Es la estación de los alimentos fríos.

VIII
Y la sed, mi memoria es de la sed, yo abajo, en el fondo, en el pozo, yo bebía, recuerdo.

IX
Caer como un animal herido en el lugar que iba a ser de revelaciones.

X
Como quien no quiere la cosa. Ninguna cosa. Boca cosida. Párpados cosidos. Me olvidé.

Adentro el viento. Todo cerrado y el viento adentro.

XI
Al negro sol del silencio las palabras se doraban.

XII
Pero el silencio es cierto. Por eso escribo. Estoy sola y escribo. No, no estoy sola.

Hay alguien aquí que tiembla.

XIII
Aun si digo sol y luna y estrella me refiero a cosas que me suceden. ¿Y qué deseaba yo?

Deseaba un silencio perfecto.

Por eso hablo.

XIV
La noche tiene la forma de un grito de lobo.

XV
Delicia de perderse en la imagen presentida. Yo me levanté de mi cadáver, yo fui en busca de quien soy.

Peregrina de mí, he ido hacia la que duerme en un país al viento.

XVI
Mi caída sin fin a mi caída sin fin en donde nadie me aguardó pues al mirar quién me aguardaba
no vi otra cosa que a mí misma.

XVII
Algo caía en el silencio. Mi última palabra fue yo pero me refería al alba luminosa.

XVIII
Flores amarillas constelan un círculo de tierra azul. El agua tiembla llena de viento.

XIX
Deslumbramiento del día, pájaros amarillos en la mañana. Una mano desata tinieblas, una mano arrastra

la cabellera de una ahogada que no cesa de pasar por el espejo. Volver a la memoria del cuerpo,

he de volver a mis huesos en duelo, he de comprender lo que dice mi voz.