27.9.09

estado de primavera


terra-cova
entre semeia
faz-se ventre

dormideira
nasce e ventre
faz-se berço

cigarra canta
flor chove ipê
e girassol

arco-iris
faz-se ninho
passarinho

rosa clara
santa mirra
um jasmim

dama da noite
sementeira
colo-ri só

26.9.09

um poema de juan gelman


mundo

da rosa que amo/como cuidarei?/
não lhe faço mal?/
não a estrago?/
não lhe corto os pés?/

e este acabar?/este estar
como não estar?/e como ir-se
de ti/rosa?/
ajuntar a dor ao já sido?/

não entristecer-te a bondade/
que no mais dos dias se queima?/
e nada?/e tudo?/e mesmo nunca?/
e que não chores?/


***

mundo

la rosa que amo/¿cómo la cuido yo?/
¿no le hago mal?/
¿no la ajo?/
¿no le corto los pies?/

¿y este acabar?/¿este estar
como no estar?/¿y cómo irse
de vos/rosa?/
¿ayuntar el dolor a lo ya sido?/

¿no entristecerte la bondad/
que los más días se te quema?/
¿y nada?/¿y todo?/¿y ya jamás?/
¿y que no llores?/

***
bibliografia readquirida e relida:
GELMAN Juan. Isso. Editora: UnB, 2004.
Tradução: Leonardo Gonçalves e Andityas Soares de Moura


***

Juan Gelman possui uma linguagem simples, solidária e intensa em seus versos. Viveu um tempo de injustiças extremas e o peso da morte na ditadura militar da Argentina. Conseguiu sublimar o ódio, a dor e a solidão do exílio através da poesia. Sinto pulsar em seus versos a busca das pessoas queridas e companheiros de ideologia que a ditadura lhe roubou e que a anistia não foi capaz de lhe devolver. Hoje continua a publicar seus livros e escrever em seu blog artigos que denunciam a mesma forma de poder que faz calar as vozes de povos que ainda vivem em situação de sujeição imposta pela força e autoridade exacerbada da tirania em pleno séc. XXI. Juan Gelman acaba por assumir o papel de porta-voz dessa gente. O golpe militar em Honduras e a Guerra na Palestina são alguns de seus temas nos artigos. Eu pessoalmente acompanho seus posts e sugiro a leitura periódica de seu blog, assim como a leitura de seus livros. Fica aqui a minha dica:
*
***
*

um tal senhor Laércio



Pediu licença e sentou-se entre a janela do ônibus e um senhor de olhar triste. Abriu um pacote de batata frita e, antes de servir-se da primeira e obedecendo a um impulso que não lhe era natural, ofereceu o que seria seu almoço do dia ao senhor. Ele agradeceu com um gesto de negação, dizendo que já havia cometido o seu primeiro pecado do dia antes de sair de casa no almoço: a gula. Que o próximo fosse uma variação de outro pecado capital. Sorriu a moça do senso de humor daquele senhor e seu sorriso abriu espaço para aprofundar uma conversa que duraria todo o trajeto do ônibus até o centro da cidade, onde se despediriam para provavelmente nunca mais se verem.

Era o fim de uma manhã cinzenta, as primeiras chuvas da primavera entristeciam aquele dia e parecia que a alegria de uma prosa agradável só acontecia naquele espaço do ônibus. Os transeuntes e motoristas da cidade pareciam taciturnos, nublados como o tempo.

Ele continuou o diálogo dando conselhos sobre uma alimentação saudável, dizendo que a saúde era uma só e que devia-se cuidar muito bem dela. Ela ouvia os conselhos com o respeito que sempre dedicava aos mais velhos, de forma benevolente, sem retrucar.

Contou ele sobre o destino de sua viagem naquele ônibus: tratamento de uma osteoporose que danava o seu joelho já cansado de carregar o peso de seu velho corpo. “Você já ouviu falar de um centro de massagem que cura vários problemas de dores físicas com um colchão que veio da Coréia do Sul?” — a moça movimentou a cabeça para dizer um não. “Pois bem, deixe-me contar a você do que se trata.” continuou o senhor de forma contundente em estender a conversa. “Esse colchão possui em seu interior pedras de jade que dizem ter o poder de curar os vários problemas orgânicos que herdamos da vida sedentária nas grandes cidades.” — E contou com os dedos: “cálculo renal, úlceras gastrintestinais, desvios na coluna, males do fígado, enxaquecas e dizem que até câncer. Eu tenho muita fé no tratamento, pois sou a prova física e viva do poder de cura dessas pedras. Antes eu não conseguia movimentar o meu joelho e o peso do meu corpo era o próprio peso do cansaço da vida que ele já não suportava. Hoje posso dizer que escalaria o monte Everest sem nenhum problema.” — a moça seguia ouvindo em silêncio já esquecida do livro Cem anos de solidão que trazia na bolsa para a leitura na viagem.

Depois de terminar a batata e guardar a embalagem vazia na bolsa, o senhor retirou uma garrafa de água de uma sacola e ofereceu à moça. Ela primeiro fez um gesto de que não precisava e ele: “Não seja orgulhosa, depois dessa batata tenho certeza que sente sede!” — e era verdade, sentia a secura do sal na boca; acabou por aceitar a gentileza. Tomou alguns goles sedentos e devolveu a garrafa ao senhor. Ele tornou a abri-la e bebeu outros goles dizendo que era a melhor água que já havia tomado na vida.

A conversa se estendeu sem preocupações sobre o que estava sendo dito ou sugerido. E tudo o que a moça falava sobre acontecimentos políticos do Brasil e do mundo o velhote tinha argumentações fundamentadas em sua experiência de vida: a influenza: "a maior doença da humaninda é o próprio ser humano"; o golpe de militar em Honduras: "o ser humano não aprende com os próprios erros, para que serve a história se não para isso?"; a guerra na faixa de Gaza: "o pior fascista é o judeu!"; as eleições para presidente no próximo ano e o governo Lula: "eu vibrei com a vitória de Lula e votaria nele de novo se ele fosse reeleito, não consigo pensar em um candidato digno para substitui-lo no Brasil"; o caso Gilmar Dantas: "vergonha de uma política que se diz transparente"; o presidente Obama eleito nos EUA: "lobo em pele de cordeiro"; o aquecimento global e o desenvolvimento sustentável: "até quando o ser humano lutará contra a natureza? o capitalismo é selvageria e não progresso!". Os assuntos se desenrolavam tão naturalmente que os dois nem se deram conta do trânsito na avenida Amazonas, tampouco do dobro de tempo que ganharam nesta viagem. A moça só olharia o relógio e se espantaria com as horas quando se visse novamente só e atrasada para o trabalho.

Quando se esgotou esses assuntos gerais, ele voltou à cama de pedras de jade. Disse que esse colchão mágico lhe havia trazido de volta o apetite sexual e era uma pena sua esposa, que vivia contando rezas nas contas de um rosário, não gostasse da ‘coisa’. Relatou desejos íntimos e falou que tudo funcionava aqui: apontou para o centro da testa, em um ponto entre os olhos. “Fantasia!” — falou entusiasmado, “é aqui que eu encontro o meu sexo. Desse jeito tenho todas as mulheres que desejo.”

Nessa hora a moça sentiu seu rosto corar, mas fingiu não entender o que ali estava sendo revelado. Ele então proceguiu: "Quando você entrou no ônibus eu firmei em mim pedindo para que escolhesse sentar ao meu lado. Veja só, o ônibus está vazio e você veio atender ao meu pedido. Tudo o que desejar peça com convicção."

Depois de uma hora e meia de conversa veio um breve silencio e, enfim, o destino dela. Falou que desceria no próximo ponto. Estendeu a mão direita em direção a ele para despedir-se quando esta foi acolhida também com a mão esquerda do homem pousada sobre a sua num gesto de guardá-la para si. Sentiram ambos um calor inexplicável naquele dia cinzento que soprava levemente uma friagem de fim de inverno. Ele disse com olhos em lampejos umedecidos mesmo sem ser indagado:

“Meu nome é Laércio, mas não me diga o seu. Para mim, você é Formosa!” — e continuou: “Meu maior inimigo é o tempo. Quisera eu ter nascido pelo menos quarenta anos depois de 1925, assim eu pediria seu telefone e encontraria você para conversar novamente. Depois eu a convidaria para fazer amor comigo em uma cama com colchão de pedras de jade! Tenho certeza que as suas e as minhas dores seriam curadas... Vai em paz menina, que os anjos guardem a beleza que você é por dentro e por fora.”

Ela, completamente cor-de-rosa, agradeceu a gentileza e se despediu apenas com mais um sorriso em resignação. Já na calçada, guardou em seu bolso um cartão com o endereço da casa de massagem que o senhor Laércio lhe entregou antes de sua descida do ônibus e deu um aceno de derradeira despedida. Foi quando uma rajada de vento embaraçou seus cabelos tampando-lhe o rosto. E essa foi a última imagem que ele guardou dela.

gravura de Kadu Veríssimo

***

obs: A cama com colchão de pedras de jade é na verdade uma cama de massagem baseada em uma técnica coreana conhecida como CERAGEM. Em Beagá o endereço para as sessões é rua: Guajajaras, 460 A - Centro (atendimento por ordem de chegada: das 7:30h às 17h - não precisa marcar horário) . As massagens são gratuitas e o paciente deve levar seu próprio lençol e virol para permanecer 40 minutos em uma das camas que, por si só, fazem o tratamento por meio de um equipamento eletrônico que massageia as costas. São indicadas até 120 sessões para alcançar os benefícios físicos ao paciente.

Tudo isso foi um passarinho quem me contou! ;)

***

19.9.09

dois momentos :: vitor santana & mariana nunes



um pouquinho de música mineira. o cd de vitor santana chama-se "Abrapalavra" e foi gravado em parceria com a intérprete mariana nunes. em especial, escuto essa música que desperta em mim um desejo de presente e futuro inexplicáveis, seguidos de uma nostalgia de um passado que aos poucos e esforço se sublima.


***

"o amor é uma festa dos sentidos:
causa espectativa na pele,
alegria no encontro dos olhos,
ouve-se a sonata de uma dança perfeita,
calam-se as palavras na despedida.
no dia seguinte se enfrenta
a rebordose de crises depois do pileque.
no final você se vê novamente
— só —
do amor se sublima a ressaca
para a festa ser eterna."

suja de piche

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O cavaleiro inexistente :: de Ítalo Calvino


"— Nós nem sabíamos que estávamos no mundo...
também a existir se aprende..."
(Bradamante :: persongem feminina do livro)


Esse livro de Ítalo Calvino conta as aventuras e desventuras de um cavaleiro de Carlos Magno que de tão perfeito e nobre, não existe. Ou não, existe por uma vontade que ultrapassa o estado físico da matéria, aquilo que compõe os corpos de todos nós, podres mortais. Uns dizem que a obra é um romance, outros que é uma fábula, mas isso pouco importa, o interessante é se deliciar com toda a trama de uma história fantástica que nos surpreende ao final do livro com as revelações que são feitas aos leitores.

Nesta obra o romance de cavalaria é contado às avessas, assim como Don Quijote de La Mancha. Ítalo Calvino nos faz rir, sonhar, nos deixa intrigados com acontecimentos e nos provoca emoções em cada capítulo do livro, principalmente depois da metade da leitura. Sua habilidade de construir um enredo que foge a toda e qualquer forma convencional, onde consegue transformar tudo em alegoria de uma forma interessante e humorística, nos faz rir de situações consideradas sérias: a burocracia do Estado, as relações de poder, as relações de amizade, o respeito absoluto por um soberano, as mazelas do amor e a magia de se sentir e estar de fato vivo nesse afã humano demasiadamente humano que nos condiciona sensações de fome, frio e dores, seja por ferimentos físicos ou por amor.

O protagonista é Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, o cavaleiro inexistente da corte de Carlos Magno. Ele serve com fé a causa da Cristandade de forma cega e rígida, cumpre todas as regras burocráticas do regimento à risca, é um cavaleiro muito competente nas batalhas, sua armadura alva e pura está sempre impecável, é um exemplo de cavaleiro levado à potência do absolutamente correto. Ao mesmo tempo ele sente pelos homens uma mistura de ressentimento, admiração e desdém por sua condição de seres humanos contraditórios, ineficientes e imperfeitos em matéria e espírito. Ao redor dele circulam vários personagens que os considero também protagonistas: Rambaldo, um jovem soldado que quer vingar a morte de seu pai e sonha em ser cavaleiro; Bradamante, uma mulher guerreira, a única amazonas do exército de Carlos Magno; Torrismundo, um rapaz que não vê sentido real naquele regimento militar e parte em busca de sua história que está vinculada aos cavaleiros do Santo Graal; e Gurdulu, o ser mais interessante de todo o livro, um mendigo que por ironia do destino se torna o escudeiro de Agilulfo, um ser inocente que está aberto a todos os estímulos positivos que encontra pelo caminho, às vezes se comporta como homem, outras como animal e até se confunde e pensa com um ser inanimado, um simples componente da paisagem.

A trama parte da questão que se coloca em um banquete sobre a autenticidade do título de Cavaleiro concedida a Agilulfo, o cavaleiro inexistente, e também de sua nobre reputação. Ítalo Calvino nos proporciona um mergulho nos tempos heróicos da cavalaria medieval, de forma burlesca e ao mesmo tempo crítica. Utiliza como narrador uma freira confinada no convento, cuja penitência é justamente escrever a história desse cavaleiro 'sui generis'. É ela, a freira, quem nos leva a um desfecho da narrativa surpreendente.
*
***

A partir desse livro estou conseguindo trabalhar com meus alunos de 12 e 13 anos da Escola da Serra todos os elementos de uma narrativa: construção dos personagens, o papel do narrador, o espaço e o tempo ficcional, a trama e o clímax da história, linguagem da narração e metalinguagem, além de levá-los a uma leitura mais subjetiva estabelecendo um diálogo entre literatura e vida.

Vale a pena ler essa obra assim como os outros títulos da trilogia: O visconde partido ao meio e O barão das árvores.






bibliografia:
CALVINO,Ítalo. O cavaleiro inexistente. Companhia das Letras: São Paulo, 2004.

15.9.09

uma descoberta :: aline hrasko

*



"Tom Jobim é marcado pela simplicidade na voz então não me acanho em cantar suas músicas do meu jeito simples. Não é uma Gal Costa, nem uma Nara Leão, mas sou eu, tentando chegar lá. =) Por todo o meu apreço e a minha admiração pelo Maestro."
(aline hrasko :: 09/04/2007)





"Mais uma de Tom Jobim, dessa vez com Vinícius de Moraes. Uma parceria que resultou em músicas excepcionais como 'Eu não existo sem você', que é uma de minhas favoritas. A gravação ficou humilde como deve ser, eu penso. =)"

(aline hrasko :: 25/04/2007)

***

entre a angústia de uma escrita e outra, eu geralmente fuço em sites de poesia ou acesso a alguns videos no youtube. só para clarear as ideias e sentir que a vida ainda continua boa de se viver. poesia e música são alimentos de espírito para mim. pois bem, nesses meus mexericos eu encontro essa menina cantora, aline hrasko - linda! fiquei admirada com sua voz, carisma e expressividade. a segunda música me tocou em especial.

e para ela, aline, uns versinhos de manuel bandeira,
meu poeta do coração:

"Definição:
Concha, mas de orelha:
Água, mas de lágima;
Ar com sentimento.
- Brisa, vibração
Da asa de uma abelha"

***

13.9.09

ensaio para um poema de amor

*
— adeus!
ouviu-se da alma desnudada
agora de dor de palavras

esta tarde
frente ao mar
gaivotas sobrevoam pensamentos

a indolência
de uma carícia perdida
fica como o único alento

no roseiral do jardim
uma quietude inquietante
litanias de uma terra morta

o inacabável,
mas não inabalável:
a paz surpreende

e sementes de uma queixa
sobre razões e paisagens de amor

guardo o retrato para mim
de García Lorca

você, que nunca será
essa doçura que nunca terá

um lápis rumina o papel:
— é de vidro e se quebrou
pedra falsa do meu anel.
*

12.9.09

Poeminha do contra :: Mário Quintana


Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!


***

o processo

*
Escrever sem o excesso de adjetivos. Transformá-los em substantivos e dizer uma qualidade sem o brilhantismo dela por ela mesma.

Não se valer de palavras modernas ou difíceis. Os modismos implicam em processo fácil de escrita e o erudito em bajulação à academia.
*
Ser eloquente sem ser sofista. Fazer da retórica uma ferramenta argumentativa de um discurso auténtico.

Dizer o frágil com a força que ele merece.

Retirar da ideia a mentira da ideia original. Recriar, repensar, refletir, eis o meu objetivo primordial.

Suavizar os paradoxos e evitar o hermetismo, o primeiro só vale para os apaixonados e o segundo para a garrafa térmica de café.

Escrever com simplicidade as frases excessivamente ricas.
*
Explicar o complexo através de uma linguagem simples, porém audaciosa.

O presente e o passado imperfeito são os únicos tempos que valem à pena.

Transformar as reflexões ingênuas em pensamentos maliciosos e vice-versa.

Evitar as analogias. Cada coisa é e não simboliza. Fazer do símbolo a própria coisa.

Dissimular os passos do processo doloroso da escrita. Fazer parecer fácil e fluida.

Só explorar as descobertas se for de forma nova, porém, sem o peso da originalidade.

Espalhar mais o meu jeito de pensar do que o jeito de pensar de outrem.

Cuidar para que as citações não sejam vulgares ou vulgarizadas, mas que estejam em diapasão com seu autor e com o meu pensamento – ainda que contradigam o último.
*
Saber usar o que me contradiz em favor daquilo que afirmo.

Procurar ser objetiva, teórica e prática, mesmo que isso seja a negação de mim mesma.
*
Não ser prepotente em querer esgotar o estudo sobre o objeto em questão. Contentar-me em ser apenas uma gota dos próximos estudos que jorrarão.
*
Esquecer por hora o lado ridículo de escrever um texto acadêmico, para conseguir chegar ao seu fim e enfim dele me livrar totalmente.
*

*

*
hoje acordei com uma moleza
de corpo e de alma,
dessas que só uma manhã de sábado
promete.

*

9.9.09

**

ascendo às estrelas
que estralam
na brasa do cigarro

**

Tempo que diz

eduardo galeano
(tradução livre :: patrícia mc quade)

A desintegração da persistência da memória :: Salvador Dalí


De tempo somos.
Somos seus pés e suas bocas.
Os pés do tempo caminham em nossos pés.
À curta ou à longa, já se sabe, os ventos do tempo apagarão as pegadas.
Travessia do nada, passos de ninguém? As bocas do tempo contam a viagem.

***
bibliografia: GALEANO, Eduardo. Bocas del tiempo. Buenos Aires : Catálogos, 2004, p. 01.

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Parábola :: Ademir Assunção




onde falam: falhas!
vejo folhas
onde falam: folhas!
ouço flautas
onde a voz falta
e o ar fala
ouça
o sábio sabe
quando cala


***
*
vc encontra mais sobre ele aqui
*
***
*

8.9.09

ah, Camões! por essa tu não esperavas!

**

O Vestibular da Universidade da Bahia cobrou dos candidatos a interpretação do seguinte trecho de poema de Camões:

'Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói e não se sente,
é um contentamento descontente,
dor que desatina sem doer '.

Uma vestibulanda de 16 anos deu a sua interpretação:

'Ah, Camões!, se vivesses hoje em dia,
tomavas uns antipiréticos,
uns quantos analgésicos
e Prozac para a depressão.
Compravas um computador,
consultavas a Internet
e descobririas que essas dores que sentias,
esses calores que te abrasavam,
essas mudanças de humor repentinas,
esses desatinos sem nexo,
não eram feridas de amor,
mas somente falta de sexo !'

***

A Vestibulanda ganhou nota DEZ, pela originalidade, pela estruturação dos versos, das rimas insinuantes e também, foi a primeira vez que, ao longo de mais de 500 anos, alguém desconfiou que o problema de Camões era apenas falta de sexo.
*
***

6.9.09

esfinge subversiva

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se me decifras
eu te devoro!
**

medo de amar

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"amar: ir além de si mesmo, ultrapassar todos os limites.
e diante de tanta ousadia,
o medo assombra: muitas vezes esse ir, não tem volta."
*
suja de piche

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5.9.09

"Terra Sonambula" :: um romance de Mia Couto

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Estou finalizando o estudo do livro Terra Sonâmbula de Mia Couto com alunos do 3º ciclo da Escola da Serra (adolescentes de 13/14 anos). Este escritor moçambicano, já é bem conhecido aqui pelos lados de Belo Horizonte, pois diversas vezes recebemos sua visita na UFMG e muitas foram as palestras que ele nos presenteou para falar de literatura em língua portuguesa e de seu país Moçambique.

Terra Sonâmbula
tem como contexto histórico a guerra da independência do país que durou cerca de 16 anos. Com seu término em 1975 os moçambicanos herdam uma terra em estado de luto, deflorada pelas ganâncias do poder capitalista, voltada para o desafio de reconstruir sua nação e resgatar suas tradições em processo de esquecimento por causa do terror da guerra que desumaniza qualquer povo nestas circunstâncias.

Mia Couto cria um cenário que mescla sonho e realidade, o pesadelo da guerra é o personagem principal. A busca pelo resgate da humanidade perdida dentro da alma dos cidadãos moçambicanos é o que comove leitores e nos aproxima de sua história. Faz parte da estética literária de Mia Couto, nesta e em outras de suas obras, a recriação de uma dimensão mágica e mítica das tradições africanas – que são tantas quantas não se pode contar – em busca de uma identidade que unisse as diversas etnias nessa terra existentes e que passaram a fazer parte dos limites de fronteiras impostos pelos colonizadores. Seus personagens, todos vagueiam por uma terra destruída pelo colonialismo brutal e pela luta de sobrevivência, compartilham o desespero mais pungente e uma esperança pela paz que se não se entrega à morte.

Sua linguagem é trabalhada a partir da oralidade das línguas africanas desse país reunidas em vocábulos e expressões próprias desses povos como recurso estilístico de criação de uma língua portuguesa moçambicana, que seja legítima a eles e por eles apropriada. Subverte as regras da gramática portuguesa e re-inventa um língua que a aproxima das identidades dos povos que ali vivem. A partir desse jogo lingüístico enriquece o português e o consagra como uma língua incorporada ao povo moçambicano. De muitos idiomas Terra Sonâmbula é constituída. Em uma entrevista o escritor afirma: “O encontro entre a oralidade e a escrita é uma das pontes que nos faltam para encontrar neste mundo o nosso mundo”.

E o resultado é poesia! Mia Couto canta as vozes dos silenciados pela guerra e massacre, pela fome e desnutrição, pelo abandono e exploração. Essas vozes trazem as histórias míticas da formação de povos, trazem a alma das tradições africanas que foram por milênios, solapadas, estupradas, deturpadas e amordaçadas.

Sem dúvida, Terra Sonâmbula é um romance que nos aproxima — nós, brasileiros — da realidade moçambicana, ainda que sejamos diferentes em contextos históricos, compartilhamos de uma irmandade mística mais negra que branca, uma irmandade de identidade mestiça, por isso universal.
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bibliografia:
COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
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fragmento de "Terra Sonâmbula" de Mia Couto

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"O adivinho olhou a terra como se dele dependesse o destino do universo. pesava nos seus olhos a gravíssima decisão de criar um outro dia.
É aqui mesmo!, disse.
(...)
Que morram as estradas, se apaguem os caminhos e desabem as pontes!
Depois começou o discurso, desfiando palavras lentas, rasgando a voz de encontro ao vento:
Chorais pelos dias de hoje? Pois saibam que os dias que virão serão piores. Foi por isso que fizeram esta guerra, para envenenar o ventre do tempo, para que o presente parisse monstros no lugar da esperança. Não mais procureis vossos familiares que saíram para outras terras em busca de paz. Mesmo que os reencontreis, eles não vos reconhecerão. Vós vos convertêsteis em bichos, sem família, sem nação. Porque esta guerra não foi feita para vos tirar do país mas para tirar o país de dentro de vós. Agora, a arma é vossa única alma. Roubaram-vos tanto que nem sequer os sonhos são vossos, nada de vossa terra vos pertence, e até o céu e o mar serão propriedade de estranhos. Será mil vezes pior que o passado, pois não vereis o rosto dos novos donos e esses patrões se servirão de vossos irmãos para vos dar castigo. Ao invés de combaterem os inimigos, os melhores guerreiros afiarão as lanças nos ventres das suas próprias mulheres. E aqueles que vos deveriam comandar estarão entretidos a regatear migalhas no banquete da vossa própria destruição. E até os miseráveis serão donos do vosso medo pois vivereis no reino da brutalidade. Terão que esperar que os assassinos sejam mortos por suas próprias mãos pois em todos haverá medo da justiça. A terra se revolverá e os enterrados assomarão à superfície para virem buscar as orelhas que lhes foram decepadas. Outros procurarão seus narizes no vômito das hienas e escavarão nas lixeiras para resgatarem seus antigos órgãos. E há-de vir um vento que arrastará os astros pelos céus e a noite se tornará pequena para tantas luzes explodindo sobre as vossas cabeças. As areias se voltearão em remoinhos furiosos pelos ares e os pássaros tombarão extenuados e ocorrerão desastres que não têm nome, as machambas serão convertidas em cemitério e das plantas, secas e mirradas, brotarão apenas pedras de sal. As mulheres mastigarão areia e serão tantas e tão esfaimadas que um buraco imenso tornará a terra oca e desventrada. No final, porém, restará uma manhã com esta, cheia de luz nova e se escutará uma voz longínqua como se fosse uma memória de antes de sermos gente. E surgirão os doces acordes de uma canção, o terno embalo da minha primeira mãe. Esse canto, sim, será nosso, a lembrança de uma raiz profunda que não foram capazes de nos arrancar. Essa voz nos dará a força de um novo princípio e, ao escutá-la, os cadáveres sossegarão nas covas e os sobreviventes abraçarão a vida com o ingênuo entusiasmo dos namorados. Tudo isso se fará se formos capazes de nos despirmos deste tempo que nos fez animais. Aceitemos morrer como gente que já não somos. Deixai que morra o animal em que esta guerra nos converteu".
***
bibliografia:
COUTO, Mia. Terra Sonâmbula. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p. 241-243.
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4.9.09

uma prece

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não desabe de mim o voo de amar
de me ver de te ver
de pairar de sentir

seja vital o sopro do vento
que embaraça pensamentos
seja perene a resistência do ar
que provoca movimentos
as penas firmes o corpo livre
olhar em riste
elevar-se
em si confiar

o amar
que seja intenso
o voar
que seja breve
o revés
que seja eterno

uma prece esvoaça as penas
antes de sonhar as alturas

por amor
não fira minhas asas
não fira as tuas asas
não firamos ninguém


**

1.9.09

Mãos dadas

**
Carlos Drummond de Andrade


Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria,
o tempo presente,
os homens presentes,
a vida presente.

**