28.12.10

Trapo

(fernando pessoa :: álvaro de campos)

O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.

Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.

Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? Afetos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso?
Não sei...
No azul da manhã...

O dia deu em chuvoso.

*

biografia: PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. pag. 381.

*

23.12.10

pé de página


antes do não seja o sim.
antes do pedido, o consentimento.
antes da palavra, o silêncio.
não dá para agradecer um agradecimento.

*

11.12.10

PSIA :: Arnaldo Antunes

— Por que a lua não se distancia da terra?
— Porque já é distante o bastante.

— Qual o olho que vê melhor?
— O do ciclope.

— Como vai?
— A pé.

— A civilização ocidental deve abrir os olhos para o Ocidente?
— Abrir os olhos.

— O que faz o céu?
— Voa.
— E a ave?
— Povoa.

— Deus existe?
— Eu também.

— Qual o ser mais puro?
— O mineral.

— Qual o ser mais puro?
— O que não fala.

— Por que o homem pensa?
— Por falta de disciplina.

— Os fatos que ninguém viu aconteceram?
— Ponho fé.

— Qual o ser mais puro?
— Bambi.

— Quando você vai voltar pra casa?
— Lá pelas onze.

— O que cabe na cabeça?
— A cabeça.

— Gosta de leite?
— Só com nescau.

— Como assim disciplina?
— Com dois esses.

— Você pertence a alguma religião?
— De uma outra região.

— Como tem passado?
— Parado.

— Por que suas respostas são sempre mais curtas que as minhas?
— Porque sim.

— O que acha da televisão?
— Deve ser vista sem o som.

— Qual o caminho?
— O certo.

— A cabeça cabe na cabeça?
— À beça.

— Quando surgiram?
— Há pouco.

— Qual o comprimento do corno do diabo?
— Só Deus sabe.

— Quando uma mulher te diz não?
— Quando ela tem razão.

— Qual o olho que vê melhor?
— O que não duvida.

— Por que o céu não cai sobre as nossas cabeças?
— Porque o druida existe.

— Quais foram as duas últimas palavras do mestre Hiang Ching antes de morrer?
— Ainda não.

— Mais alguma coisa?
— Sim.

***

bibliografia degustada: ANTUNES, Arnaldo. PSIA. São Paulo: Iluminuras, 2001.

***

9.12.10

derrelição :: segundo hilda hilst


“Derrelição. Não, não parece triste, talvez porque as duas primeiras sílabas lembrem derrota, e lição é sempre muito chato. Não, não é triste, é até bonita. Desamparo, Abandono, assim é que nos deixaste. Porco-Menino, menino-porco, tu alhures algures acolá lá longe no alto aliors, no fundo cavucando, inventando sofisticadas maquinarias de carne, gozando o teu lazer: que o homem tenha um cérebro sim, mas que nunca alcance, que sinta amor sim mas nunca fique pleno, que intua sim meu existir mas que jamais conheça a raiz do meu ínfimo gesto, que sinta paroxismo de ódio e de pavor a tal ponto que se consuma e assim me liberte, que aos poucos deseje nunca mais procriar e coma o cu dos outros, que rasteje faminto de todos os sentidos, que apodreça, homem, que apodreças, e decomposto, corpo vivo de vermes, depois urna de cinza, que os teus pares te esqueçam, que eu me esqueça e focinhe a eternidade à procura de uma melhor idéia, de uma nova desengonçada geometria, mais êxtase para a minha plenitude de matéria, licores e ostras...”


Hilda Hilst

8.12.10

O amor e seu tempo

carlos drummond de andrade

Amor é privilégio de maduros
Estendidos na mais estreita cama,
Que se torna a mais larga e mais relvosa,
Roçando, em cada poro, o céu do corpo.

É isto, amor: o ganho não previsto,
O prêmio subterrâneo e coruscante,
Leitura de relâmpago cifrado,
Que, decifrado, nada mais existe

Valendo a pena e o preço do terrestre,
Salvo o minuto de ouro no relógio
Minúsculo, vibrando no crepúsculo.

Amor é o que se aprende no limite,
Depois de se arquivar toda a ciência
Herdada, ouvida. amor começa tarde.

5.12.10

o direito de sonhar

de Eduardo Galeano
tradução livre de patricia mc quade


Ninguém sabe como será o mundo depois do ano 2000. Temos uma única certeza: se ainda estivermos aqui, já seremos pessoas do século passado y, pior ainda, seremos pessoas do milênio passado.

Entretanto, mesmo que não possamos adivinhar o mundo que será, podemos sim imaginar o que queremos que seja. O direito de sonhar não está estampado nos trinta direitos humanos que as Nações Unidas proclamaram em 1948. Mas se não fosse por ele, e pelas águas que dá de beber, os outros direitos morreriam de sede.

Deliremos, pois, por um momento. O mundo, que está de pernas para o ar, se firmará sobre seus pés.

• Nas ruas, os automóveis serão pisados por cachorros.

• Os cozinheiros não acreditarão que as lagostas adoram ser fervidas vivas.

• A polícia não será a maldição de quem não pode comprá-la.

• O ar estará limpo dos venenos das máquinas, e não haverá mais poluição do que aquela que emana dos medos humanos e das humanas paixões.

• Os historiadores não acreditarão que os países adoram ser invadidos. Os políticos não acreditarão que os pobres adoram comer promessas.

• A justiça e a liberdade, irmãs siamesas condenadas a viverem separadas, voltarão a se juntar, bem coladinhas, costa com costa.

• As pessoas não serão dirigidas pelo automóvel, nem serão programadas pelo computador, nem serão compradas pelo supermercado, nem serão assistidas pelo televisor.

• O mundo já não estará em guerra contra os pobres, mas contra a pobreza, e a indústria militar não terá mais remédio do que declarar para sempre sua falência.

• Uma mulher, negra, será presidente do Brasil e outra mulher, negra, será presidente dos Estados Unidos da América.
Uma mulher índia governará Guatemala e outra, Peru.

• O televisor deixará de ser o membro mais importante da família, e será tratado como o ferro de passar ou a máquina de lavar roupas.

• Ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão.

• Na Argentina, as loucas da Praça de Maio serão um exemplo de saúde mental, porque elas se negaram a esquecer nos tempos de amnésia obrigatória.

• As pessoas trabalharão para viver, em lugar de viverem para trabalhar.

• Os meninos de rua não serão tratados como se fosse lixo, porque não haverá meninos de rua.

• A Santa Madre Igreja corrigirá algumas erratas das tábuas de Moisés:
O sexto mandamento ordenará: “Festejarás o corpo”.
O nono, que desconfia do desejo, irá declará-lo sagrado.

• Em nenhum país irão presos os rapazes que se neguem a fazer o serviço militar, senão aqueles que queiram fazê-lo.

• As crianças ricas não serão tratadas como se fosse dinheiro, porque não haverá crianças ricas.

• A igreja também ditará um décimo primeiro mandamento, que se esqueceu o Senhor: “Amarás a natureza, da qual fazes parte”.

• Os economistas não chamarão nível de vida ao nível de consumo, nem chamarão qualidade de vida à quantidade de coisas.

• A educação não será um privilégio de quem possa por ela pagar.

• Todos os penitentes serão celebrantes, e não haverá noite que não seja vivida como se fosse a última, nem dia que não seja vivido como se fosse o primeiro.

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texto traduzido do site: pro diversitas

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já dez anos quase concluidos de século XXI se passaram e continuo inclinada ao meu direito legítimo de sonhar. sonho com a segunda década deste ainda novo século cheia de transformações na mentalidade das pessoas e na realidade de vida vivida, morta e ressuscitada com mais justiça e liberdade para todos.

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