27.11.08

suspiro


Se a boca quer silêncio
Beijo fala por ela.

Se a boca não se cala
Cala com beijo nela.

Se a boca nem se fala
tantas línguas como falo
entre beijos e babados
não dá tempo pra ela.
..........

22.11.08

sobre a sensação :: gilles deleuze


"... o que é uma sensação?

É a operação de contrair em uma superfície receptiva trilhões de vibrações."

DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Trad. de Luiz B. L. Orlandi. SP: Ed. 34, 1999.


a citação é uma provocação ao pensamento suscitada por davi pantuzza. a foto foi presente de cléa batista. achei que a questão provocativa combina certinho com a foto em alguns casos.

fica o não dito pelo dito-imagem.

18.11.08

Adiamento :: fernando pessoa


Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...

Álvaro de Campos

***

fim de ano, muitos projetos escolares por cumprir, centenas de avaliações por corrigir e dezenas de páginas de relatórios por escrever. sim! só depois de amanhã pensarei no trabalho que deveria ter finalizado e entregue ontem. o meu sono é mais urgente. o meu prazer é inadiável. paro tudo só para escrever o que não preciso, só para ler o que não tem necessidade prática imediata, só para cantar a noite e a lua, o sol e o azul de me querer livre. depois de amanhã darei conta de todos os meus compromissos burocráticos de praticidade sufocante. 

esse poema é a síntese do meu estado de espírito hoje, ontem e anteontem. depois de amanhã sentirei a encrenca em que eu me meti. e se sobreviver às cobranças e broncas, brindarei o porvir, sim o porvir de adiar tudo de novo.

obrigada pessoa!

16.11.08

antes surreal do que jamais :: vladimir kush

“falando claro: o maravilhoso é sempre belo, qualquer maravilhoso é belo, só mesmo o maravilhoso é belo”.

(andré breton, Manifesto Surrealista, 1924)


"surrealismo, s.m. automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral.

encicl. filos. o surrealimo repousa sobre a crença na realidade superior de certas formas de associações desprezadas antes dele, na onipotência do sonho, no desempenho desinteressado do pensamento. tende a demolir definitivamente todos os outros mecanismos psíquicos, e a se substituir a eles na resolução dos principais problemas da vida".

(andré breton, Manifesto Surrealista, 1924)

***
surrealismo: (de acordo com houaiss)
substantivo masculino
Rubrica: história da arte.
movimento literário e artístico, lançado em 1924 pelo escritor francês André Breton (1896-1966), que se caracterizava pela expressão espontânea e automática do pensamento (ditada apenas pelo inconsciente) e, deliberadamente incoerente, proclamava a prevalência absoluta do sonho, do inconsciente, do instinto e do desejo e pregava a renovação de todos os valores, inclusive os morais, políticos, científicos e filosóficos.
Obs.: f. pref. e menos us.: supra-realismo

***


na obra de vladimir kush o mito, a metáfora e a poesia dialogam em formas oníricas reais. seguindo seus precursores: savador dali, rené magritte, andré breton, guillaume apollinaire; kush se vale de técnicas surreais já trabalhadas por esses artistas. um exemplo seria a justaposição de objetos e formas que na “realidade” não se encontram relacionadas, causando efeitos novos que atuam diretamente na nossa percepção de como vemos o mundo, e compõe, assim, outras realidades, não as do sonho, ou as da vertigem, mas realidades que transcendem o sonho, a vertigem e o real ao mesmo tempo. kush constroi dessa forma diferentes pontos de vista frente a uma verdade que se crê (vi)ver. sua obra combina muito bem o mundo onírico ao mundo real. traz referências de um realismo tão profundo que excede os significados dos sonhos assim como os da própria realidade. as metáforas bailam sobre o mundo real que conhecemos, pois trazem elementos muito próximos da presentificação das coisas. é o que ele mesmo denomina de "Realismo Metafórico" ou "Realismo de Metamorfose".

sua arte segue os seguintes princípios:

cria um mundo mítico de verossimilhanças com o mundo real, como acontece, por exemplo, no realismo mágico da literatura e do cinema.

prefere o aspecto estético a motivos emocionais.

usa a ironia como uma de suas principais linguagens metafóricas e alcança, através dela, o encantamento real de sua estética.

***

selecionei alguns quadros dele que mais me impressionaram e os combinei com fragmentos do manifesto surrealista, escrito por andré breton em 1924. ontem, sábado, passei a tarde me deliciando na leitura deste manifesto.

***

"tão longe vai a crença na vida, no que a vida tem de mais precário, a vida real entenda-se, que, por fim, esta crença se perde".

"cara imaginação, o que eu amo, sobretudo em você, é que você não perdoa".

"a única palavra de liberdade é tudo o que me exalta ainda. eu a creio apropriada a entreter, indefinidamente, o velho fanatismo humano. (...) onde começa ela [a imaginação] a se tornar má e onde pára a segurança espiritual? para o espírito, a possibilidade de errar não será antes a contingência do bem?"

"não será o temor da loucura que nos forçará a hastear a bandeira da imaginação a meio pau".

"(...) a atitude realista, inspirada no positivismo, de santo tomás a anatole france, tem um ar hostil e todo arrojo intelectual e moral. tenho horror a ela, pois é feita de mediocridade, de ódio e suficiência sem atrativo".

"o espírito do homem que sonha se satisfaz plenamente com o que lhe acontece. a angustiante questão da possibilidade não se lhe apresenta mais. mate, roube mais depressa, ame tanto quanto quiser. e se você morrer, não tem você a certeza de despertar dentre os mortos? deixe-se levar, os acontecimentos não toleram que você os retarde. você não tem nome. a facilidade de tudo é inestimável".

“nestes quadros que nos fazem sorrir, no entanto sempre se pinta a inquietação humana, e é por isso que os levo a sério, que os julgo inseparáveis de algumas produções geniais, as quais, mais que as outras, estão dolorosamente impregnadas dessa inquietação”.

se quiser o manifesto surrealista na íntegra, acesse aqui.

boa leitura!

***

vladimir kush nasceu em moscou no ano de 1965. a partir de 1990 começa a definir melhor a sua estética artística com muito brilhantismo e criatividade ao reinventar o surrealismo.


15.11.08



bom dia, meu amor!
bom dia! insiste ela de novo.
— os sonhos cor-de-rosa
são tão ordinários quanto as meninas pálidas —
ao pensar assim, varia o sonho dalva decor,
concorda no azul, talvez.
e no amarelo de sua memória
havia todo desejo branco de ser amada:
verde todo dia, lilás toda noite, verde-água a vida inteira.
bom dia, bom dia!
com toda a doçura vermelha de quem se quer amada,
muito, sempre e de novo.
bom dia! agora em laranja.

ad infinitum

(...ausência de cores...)


12.11.08

escribir es combatir :: José Martí


"uma pitada de poesia já basta
para perfumar um século inteiro".
josé martí

esta frase eu ouvi sendo repetida calorosamente hoje por um motorista de taxi cubano residente em bh a mais de 10 anos.
silêncio intenso durante o percurso do taxi lotação que sobe e desce a avenida afonso penna, nos descobrimos quando o carro parou em um transito imenso depois da praça tiradentes. pelo sotaque perguntei de onde ele era. "soy de cuba", me contestó en español.
depois disso foram mil as descobertas de afinidades. compay segundo, ibrahim ferrer, omara portuondo, che guevara, críticas políticas a fidel castro. no entanto, o tema mais intenso e de maior sintonia foi el apóstol José Martí.

HIJO


Espantado de todo, me refugio en ti.
Tengo fe en el mejoramiento humano, en la vida futura, en la utilidad de virtud, y en ti.
Si alguien te dice que estas páginas se parecen a otras páginas, diles que te amo demasiado para profanarte así. Tal como aquí te pinto, tal te han visto mis ojos. Con esos arreos de gala te me has aparecido. Cuando he cesado de verte en una forma, he cesado de pintarte. Esos riachuelos han pasado por mi corazón.
¡Lleguen al tuyo!
(obra poética: Ismaelillo)


***
José Martí foi um grande intelectual do séc. XIX que soube usar a pena como uma ferramenta revolucionária desde a sua juventude. Foi preso político quando era um adolescente por causa de seus textos inflamados que incitavam a revolução das massas. Fez uso da ironía para provocar o incômodo moral nos opresores inimigos dos direitos humanos e da liberdade de Cuba e sonhava essa mesma liberdade também para toda América. Seus ideais revolucionários foram tão intensos que perduraram ao longo do séc. XX e serviram de inspiração e força política para a revolução cubana em 58. Conhecia profundamente a cultura Européia e de boa parte da América. Foi artista, sensível e culto, de muito talento e imaginação, um excelente orador, de raro sentido estético e ético. Acreditava no homem como um ser que poderia revolucionar o mundo onde vivia. Através de sua escrita soube defender suas causas mais nobres como o sonho da união da América Latina e a liberdade de todos os povos. Além de contribuir para os pensamentos ideológicos de sua época, difundiu uma literatura cubana mais livre dos moldes europeus. Seu estilo era movido pelo ímpeto de seu espírito revolucionário, amplo e majestoso. Trouxe para a sua poesia o calor de sua dor de forma latente que até hoje no há quem no se sinta provocado diante dela. Devoto de sua pátria se tornou um símbolo latinoamericano de resistência contra o colonizador — antes o espanhol, agora o norte americano. Chamado “el apóstol” tinha uma visão do futuro da América e conseguiu ver através da nebulosidade que ocultavam seu destino político o advento de um novo opressor: não aquele distanciado geograficamente pelo oceano Atlântico, mas uma super-potência que se formava, que começava a apresentar as pontas de suas garras dominadoras — EUA. Suas palavras eram de um poder metafórico e uma força lírica que surpreendia a muitos:

“El desdén del vecino formidable, que no la conoce, es el peligro mayor de nuestra América; y urge, porque el día de la visita está próximo, que el vecino la conozca. La conozca pronto, para que no la desdeñe. Por el respeto, luego que la conociese, sacaría de ella las manos.”

José Martí esteve a frente de seu tempo. Enquanto muitos intelectuais tentavam instituir seus pensamentos cheios de preconceitos contra as raças consideradas selvagens, consideradas por eles pertencentes a civilizações primitivas e inferiores (índios, negros, mestiços), Martí erguia a bandeira humana de que somos todos iguais em direitos e que nenhuma raça tem qualquer direito especial sobre uma outra. Além disso, afirmou que não existem raças, existem diferenças físicas e culturais, pois somos todos parte da espécie humana:

“No hay odio de razas, porque no hay razas”.

***
Em 19 de maio de 1895, no comando de um pequeno contingente de patriotas cubanos, após um encontro inesperado com tropas espanholas nas proximidades do vilarejo de Dos Rios, José Martí é atingido à bala e vem a falecer em seguida. Seu corpo, mutilado pelos soldados espanhóis, é exibido à população e posteriormente sepultado na cidade de Santiago de Cuba, em 27 de maio do mesmo ano.



guantanamera
raices de américa
poema: José Martí
composição: Joselito Fernandez

Guantanamera, guajira guantanamera
Guantanamera, guajira guantanamera

Yo soy un hombre sincero
De donde crece la palma
Yo soy un hombre sincero
De donde crece la palma
Y antes de morir me quiero
Echar mis versos del alma

Guantanamera, guajira guantanamera
Guantanamera, guajira guantanamera

Mi verso es de un verde claro
Y de un carmín encendido
Mi verso es de un verde claro
Y de un carmín encendido
Mi verso es un ciervo herido
Que busca en el monte amparo

Guantanamera, guajira guantanamera
Guantanamera, guajira guantanamera

Por los pobres de la tierra
Quiero mis viersos dejar
Por los pobres de la tierra
Quiero yo mis viersos dejar
Por que arroyo de la sierra
Me complace más que el mar

Guantanamera, guajira guantanamera
Guantanamera, guajira guantanamera


10.11.08

MANIFESTO PELO NU


O nu agora é rito
É você voltar a ter conhecimento das suas origens primais.
Se redescobrir ser humano
e perceber
o quanto somos limitados com as vestes de hoje.
Somos iguais,
o nu não nasce burguês,
pelo contrario, ele desmascara a burguesia
tornando em bicho erótico,
em “sensações e folias”
que é se sentir no seu maior estado de percepção sem contradição.
Estando nu, o que você tem a esconder?
O que você pensa e imagina
seu corpo reage nas contrações,
descontrações
e cheiros
que provocam qualquer classe social.
Mostrando as infinitas possibilidades do prazer
de estar nu.
Ou seja, o nu,
pele com pele não repele
a descoberta de ser nós mesmos
enquanto admiradores
e atuadores
encantados
com a beleza nua de poder vestir
um outro alguém.

Fred Steffen, ator do Teatro Oficina, escreveu esse texto no calor da hora do “rito rave teatral” que aconteceu dia 28/10/08 na sede do grupo. Espécie de espetáculo-panorama onde foram encenados trechos de peças que marcaram a história da companhia. Faz parte das comemorações de 50 anos do grupo Oficina que contou com a participação especial de Maria Alice Vergueiro e happining com o público que compareceu levando vinho e presentes.

9.11.08

Chora Um Rio :: Cry Me a River

interpretação: Ná Ozzetti

Hoje está sozinho
Chora até o sol nascer
Então me chora um rio
Chora
Que eu chorei rios por você

Hoje sente pena
Porque me fez sofrer
Então me chora um rio
Chora
Que eu chorei rios por você

Por pouco, muito pouco eu não enlouqueci
E ora você nem aí
Não lembra, eu lembro que me disse assim
Que eu estava por um fio
Que o amor era um delírio

E hoje diz que me ama
Então eu quero ver
Então me chora um rio
Chora um Tietê
Que eu chorei rios por você

Davy Graham - Cry Me A River (1959)

violonista inglês Davy Graham tocando Cry Me A River, gravado em 1959 por BBC documentary, direção de Ken Russell.


os sete pecados capitais


eduardo galeano
(tradução livre :: patricia mc quade)

De joelhos no confessionário, um arrependido admitiu que era culpado de avareza, gula, luxúria, preguiça, inveja, soberba e ira:

Jamais me confessei. Não queria que os senhores, os padres, se deleitassem mais que eu com meus pecados, e por avareza os guardei para mim.

Gula? Desde a primeira vez que a vi, confesso, o canibalismo não me pareceu tão mal.

Chama-se luxúria isso de entrar em alguém e perder-se ali dentro e nunca mais sair?

Essa mulher era a única coisa no mundo que não me dava preguiça.

Eu sentia inveja. Inveja de mim. Confesso.

E confesso que depois cometi a soberba de crer que ela era eu.

E quis quebrar esse espelho, louco de ira, quando não me vi.

***

bibliografia: GALEANO, Eduardo. Bocas del tiempo. Buenos Aires: Catálogos, 2004. p. 12.

***

Cuidado, cuidado, Deus vê! :: Hieronymus Bosch


OS SETE PECADOS CAPITAIS


o pecado original sempre foi uma temática que impressiona o meu imaginário feminino. os sete pecados estão, no meu ponto de vista, condensados neste pecado primeiro da desobediência de eva, ocasionando inevitavelmente a libertação de lilith e nos salvando do tedioso paraíso perfeito. imagine um sexo confinado (e)ternamente à ordem: "crescei e multiplicai". imagine o corpo sempre disposto à obediência e ao trabalho sem nenhuma vez experimentar a morosidade do relaxo, do ócio, da entrega total aos sentidos de sua matéria. imagine o corpo contido de impulsividade, nulo de reações frente às adversidades, sempre controlador das paixões. imagine um mundo sem paixões!
foram elas, as paixões, que levaram o ser humano a criar as mais belas obras de arte, a vencer as limitações de seus conhecimentos intuitivos, míticos, para fazer ciência e entender melhor a própria natureza humana e o mundo no qual (co)habitamos. é pela paixão - no duplo sentido da palavra: de martírio e de amor avassalador e intenso - que pintamos a nossa própria "realidade" com as cores que escolhemos a fim de alimentar o fogo divino roubado por prometeu e continuar a jornada de nossas vivências.
Hieronymus Bosch, dizem, foi um artista extremamente moralista e alegórico – no sentido de pintar figuras compostas pela redundância de um significado que tem, geralmente, cunho moralizante, através do uso de imagens que possuem uma explícita significação coletiva. talvez o quadro Os sete pecados capitais fora encomendado por uma ordem monástica da época, mas isso ninguém pode afirmar. Bosch escolhia personagens de lendas, provérbios e superstições populares, dando-lhes um aspecto fantástico próprio de sua arte, uma visão de mundo condicionada por suas limitações sensoriais condizentes com o pensamento mítico de sua época. uma capacidade sensitiva de capitar essa "realidade" lhe permitiu abordar desde os pecados humanos até sua terrível conseqüência, o inferno. para mim, Bosch demonstrou especialmente neste quadro sua preocupação para com o homem, mostrou de forma contundente e sem rodeios sua percepção apocalíptica dessa condição humana e foi além das barreiras religiosas inquisitivas colocando o homem como centro de seu universo artístico. percebe-se que a paixão de Bosch não é Deus, ou a religião, ou a moral; é o homem tal qual ele é: avarento, luxurioso, irado, preguiçoso, guloso, invejoso e soberbo. não dá pra negar o que faz parte da natureza humana.
na obra Os Sete Pecados Capitais, jesus cristo — deus/homem — se encontra no centro do painel, cercado por um largo anel dourado no qual está inscrito em latim uma frase que podemos ler como um mantra, talvez negativo, que denuncia a espionagem divina: "Cuidado, cuidado, Deus vê". a esfera central nos remete à imagem de um olho humano, com pupila e íris. cristo é o homem que está dentro da pupila. seria o olho de Deus, Aquele que tudo vê. ou poderia ser o olho do inquisitor, vigilante, carnífice, que legitimava pelo nome de Deus a fogueira que acendia o verdadeiro inferno para queimar profanos, bruxas e libertinos?! ao redor temos a representação de cada um dos sete pecados capitais em cenas do cotidiano da época, cíclicas: portanto infinitas, familiares aos observadores que podem flagrar a si mesmos cometendo esses mesmos pecados. nos quatro rincões da moldura encontramos círculos, dentro dos quais estão as figuras oníricas da morte, do juízo final, do inferno e do paraíso. esse circulo central leio como uma mandala que, talvez, sem Bosch se dar conta e obedecendo a sua força de expressividade, ele pintou — de forma alegórica sim — a representação dos elementos pecaminosos que fazem parte intrínseca do ser humano. os outros círculos ao redor seriam partes do universo imaterial que o humano cria a partir de seu imaginário herdado pelo cristianismo, algo fora dele, como se fossem poderes controladores, que insitam a autoflagelação psíquica/física. essa mandala central seria, portanto, a luta do ser humano pela unidade do eu, pela unidade de sua natureza, ou melhor dizendo, pela unidade de seus pecados que o tornam essencialmente humanos.
essa é a minha ousada leitura desse quadro!
Hieronymus Bosch nasceu por volta de 1450 em província holandesa, provavelmente na pequena cidade de Hertogenbosch, da qual é quase certo que derivou seu sobrenome artístico.
***
"O momento ápice no desenvolvimento humano é o todo contínuo de seus pecados. É por causa deles que existem as mais extraordinárias descobertas e também as ordens cristãs. Esta última declara tudo imundo, tudo profano; enquanto a primeira é condizente ao estado original do homem, sem corruptelas. Tudo o que ocorreu antes do pecado, nada aconteceu". Hieronymus Bosch

acepção dos 7 pecados :: segundo houaiss e patricia mc quade

avareza: desejo intenso e violento de possuir; concupiscência de bens materiais; anelo de prazeres sensuais; falta de magnanimidade, de generosidade; mesquinharia.
gula: desejo ardente de comer; desejo sensual imoderado; atração irresistível por...; gulodice; vício de comer e beber (alguém) em excesso.
luxúria: amor aos prazeres da carne; corpo lascivo propenso à libertinagem; corrupção do viço; atração desmesurada pelo falo ou/e pelo monte de vênus.
preguiça: aversão ao trabalho; estado de indolência do corpo sensual, morosidade, negligência das responsabilidades, ócio, vagabundagem, vadiagem.
inveja: provocado pela prosperidade ou alegria alheia; desejo irrefreável de possuir ou gozar, em caráter exclusivo, o que é possuído ou gozado por outrem.
soberba: arrogância, amor próprio exagerado; capacidade a atribuir a si os direitos de outros; altura de algo que é superior a outro; elevação, estado sobranceiro.
ira: raiva, ódio, paixão desmesurada que nos incita contra alguém, desejo de vingança; rancor generalizado em função de alguma situação injuriante; fúria, indignação, cólera.

6.11.08

vamos logo sem paredes :: celso sim!

“A arte do seu canto constela experiência musical e vivência cênica. Ao longo de profundas imersões teatrais, entre as quais o Teatro Oficina, ele vislumbrou que um ator, se não for cantor, não é ator – e vice-versa. A voz carrega o espaço em si e o faz voar. Primeiro e último passo: tomar conta do espaço. E agora o espaço é a cidade, tanto o da avenida quanto o da alma, cujas paredes são o cenário que urge derrubar e cantar e recriar”. (vadim nikitin)



fico admirada ao ver como o público mineiro apresenta limitações quando se trata de conhecer o que ainda não se foi visto aqui em minas. esse mesmo público se sente ofendido e não gosta de ser chamado de público provinciano, ou mesmo reacionário no sentido de ser avesso às mudanças de perspectivas e gostos musicais, por exemplo. tudo tem no fundo no fundo um sentido político, de ordem estética, arraigada nas estruturas sociais mineiras, tradicionais demais, habituais demais, conservadoras demais. fazer o quê? portanto, a minha indignação me remete, ainda que tardia, a colocar a boca no trombone.

estou falando do show de celso sim, vamos logo sem paredes, apresentado na sala joão ceschiatti, palácio das artes, nos dias 30 e 31 de outubro. acompanhado pelos músicos da voodu music: paulo lepetit, no baixo e violão; gigante brazil, (que não pôde participar do show em bh pois 'partiu desta pra melhor' em fins de setembro) na bateria e voz; marcelo jeneci, no piano e acordeon; o cantor deu um verdadeiro show de qualidade musical, composição variada, irreverência performática, sensualidade no gingado e muito, muito carisma para um público que não ultrapassou, na noite de sexta-feira (!), a 20 pessoas. o anfitrião foi o nosso tão conhecido kristoff silva, parceiro de guitarra e voz que deu uma canja no show em bh e demonstrou ter muita intimidade musical com o visitante vindo de sampa.

o título do cd é um tapa de luva de pelica nesse público que não sabe derrubar as paredes do convencionalismo midiático circunscrito em si, o cabresto dos meios de comunicação de massas que faz a maioria das pessoas a dar voltas e voltas no moinho dos mesmos artistas de carreira estável nas paradas de sucesso – não quero aqui tirar-lhes o mérito de suas qualidades musicais, mas pagar o preço absurdo de 100 reais, por exemplo, em um show da adriana calcanhoto, ainda que eu seja fã dela, é no mínimo uma falta de noção ao pensar que essa quantia é praticamente um quarto do salário mínimo brasileiro. o show, celso sim, vamos logo sem paredes, teve o preço popular de 15 reais a inteira e 7,50 a meia — diferenças a parte!

a história desse título nasceu de uma conversa com uma amiga-atriz crente do candomblé e celso sim leva essa proposta-mantra “vamos logo sem paredes” até as últimas conseqüências e nomeia com ele o seu mais novo cd. artista não-comercial atua como protagonista do espaço urbano, combatendo os obstáculos capitalistas e os de meios de controle político e de produção cultural: não vende a sua música por uso abusivo e deliberado de dissonância monetária, não se compromete às propostas mercadológicas do universo “fonosônico” das gravadoras. celso parece levar ao pé da letra os conselhos de seu amigo e comparsa miguel wisnik, de que a arte deve ser descompromissada com o lucro, portanto, deve ser livre e fiel ao seu criador-atuador. celso sim disponibiliza suas gravações para downloads gratuitos no seu site oficial:

http://www.vamoslogosemparedes.com.br/

Entre os compositores das músicas interpretadas por celso sim neste cd estão: adoniran barbosa, arthur nestrovski, cacá machado, fred martins, guilherme wisnik, heinrich heine, marcelo diniz, paulinho da viola, pepê mata machado, pixinguinha, robert schumann e vadim nikitin.

cantor-compositor-ator-performer, celso sim é um artista considerado completo para o palco de show music ou teatro. cantou e compôs com jorge mautner, miguel wisnik, arthur nestrovski, jards macalé, só para citar mais alguns. atuante direto do teatro oficina à mais de 14 anos, compôs uma infinidade de canções para esse grupo teatral que tem como foco o coro dos atores em cena. outras são também as suas atuações artísticas, mas me limito por aqui para não cansar o leitor com um currículo extenso e intenso.

sobre o cd:

é vigoroso! basta considerar o timbre lívido da voz vibrante e comovente de celso sim, sem falar dos arranjos primorosos de gigante brazil e paulo lepetit e a amplitude sonora que o conjunto dessas vibrações provocam no ouvinte. é poético! além de uma verdadeira identidade que em sua arte revela puro lirismo e confunde arte-vida, podemos ainda degustar poemas musicados de oswald de andrade — chove chuva choverando — e álvaro de campos — saudações a walt whitman. é contagiante! não é preciso dizer que a vontade de dançar e sacudir todo o corpo é inebriante, provoca enleio, êxtase corporal e nos evoca as vozes silenciadas de nosso eu convidando-nos a cantar e a bailar junto.




é! o belorizontonto perdeu. agora não adianta apelar. o único jeito é esperar o próximo show ou ir a são paulo conferir.

fazer o quê?!

mas pra você não chorar as mágoas de ter perdido, deixo acima de presente um videozinho do youtube com a música chove chuva choverando, e ainda com a participação do gigante brazil em matéria humana, antes de se transfigurar em espírito musicaluz.

4.11.08

PRA QUE CHORAR


(Ich grolle nicht) do ciclo Dichterliebe (1841 – 2008)
R. Schumann, H. Heine; versão brasileira: Arthur Nestrovski
Interpretação: Celso Sim


Pra que chorar
Pra que sofrer demais
Foi só um amor perdido
Foi só um amor a mais
Pra que sofrer
Pra que chorar

Pode brilhar
Pode posar de amar
Não tem mais luz
Pra me fazer voltar

Meu coração...
Meu coração
Bate infeliz demais

Vi seu rosto na cidade
Você fugindo de você e de mim
Vi a serpente — e era um sonho ruim
Mesmo chorando eu não vou mais chorar
Pra que sofrer
Pra que chorar

2.11.08

por que suja de piche?


muitas pessoas me fazem essa pergunta:
por que suja de piche?
resposta boba:

só por causa de um poeminha que escrevi sobre como eu me lembro de criança.
brincava muito na rua de casa em sampa como moleca. antes a rua era de terra vermelha, empoeirada de uma terrinha fina, solta e macia, com algumas pedras e restos de entulho. depois chegaram as máquinas de asfaltar. por dias minha tia carmita teve muito trabalho para lavar o piche que ficava grudado nos meus pés, mãos, joelhos e rosto. eu me divertia vendo o tapete negro que se formava na extensão do meu quintal. por último, veio a poeira seca do asfalto, os joelhos ralados de muitos tombos que a vida me deu — e não se cansa de me dar — e o quente do sol no áspero negrume que me fazia não aguentar mais os pés descalços. mas continuei me divertindo, desenhando com tijolo vermelho que recolhia nas construções, amarelinhas, desenhos de casinhas, montanhas e nuvens, gravuras que ficaram no quadro negro da rua de minha infância.

talvez seja por isso que eu sempre quis ser professora: para continuar desenhando a infância minha e de outras crianças.
imagens nebulosas, meio ofuscadas pelo tempo, no branco e preto de minhas lembranças.

tonterías en recuerdos de niñez.

suja de piche

menina suja de terra vermelha
dos dedos do pé até o nariz
razão com ela ralha
água e sabão que lava a alma
certa certeza de aérea ser sua raíz

menina suja de negro pinche
vive ultrapassando o tênue limite
não admite bronca
não existe quem a imite
transfigura realidade em pleno fetiche

menina suja de poeira no asfalto
possui o ímpeto de voar mais alto
equilibra-se na guia
pula este muro imposto
caminha consigo na rua do oposto