23.9.12

Amor à primeira vista


de Wislawa Szymborska

Ambos estão certos
de que uma paixão súbita os uniu.

É bela essa certeza,
mas é ainda mais bela a incerteza.

Acham que por não terem se encontrado antes
nunca havia se passado nada entre eles.
Mas e as ruas, escadas, corredores
nos quais há muito talvez se tenham cruzado?

Queria lhes perguntar,
se não se lembram -
numa porta giratória talvez
algum dia face a face?
um “desculpe” em meio à multidão?
uma voz que diz “é engano” ao telefone?
- mas conheço a resposta.
Não, não se lembram.

Muito os espantaria saber
que já faz tempo
o acaso brincava com eles.

Ainda não de todo preparado
para se transformar no seu destino
juntava-os e os separava
barrava-lhes o caminho
e abafando o riso
sumia de cena.

Houve marcas, sinais,
que importa se ilegíveis.
Quem sabe três anos atrás
ou terça-feira passada
uma certa folhinha voou
de um ombro ao outro?
Algo foi perdido e recolhido.
Quem sabe se não foi uma bola
nos arbustos da infância?

Houve maçanetas e campainhas
onde a seu tempo
um toque se sobrepunha ao outro.
As malas lado a lado no bagageiro.
Quem sabe numa noite o mesmo sonho
que logo ao despertar se esvaneceu.

Porque afinal cada começo
é só continuação
e o livro dos eventos
está sempre aberto no meio.

(Tradução Regina Przybycien)

20.9.12

que o mundo acabe num suspiro

sem a melancolia da lágrima suspensa na ribalta que não se permitiu rolar precipício abaixo
sem o lamento do amor não vivido num espaço que só as naftalinas conseguem eternizar
sem a gana de viver todo o perdido do tempo nos últimos segundos de insistência
sem o drama venturoso do que poderia ser e não foi além da mediocridade

mas que acabe num suspiro da clara de ovo batida com açucar
na espiral e tempo em câmera lenta segura pela mão
assado ao fogo matutino dos raios de sol
ao ponto de dar água na boca

hum! que o mundo acabe com a última mordida na Aurora

que o mundo acabe num suspiro

18.9.12

!

acorda, bebe dessa montanha, come desse céu,
despenteia esse cabelo e
saiba que o mundo é todo teu!

5.9.12

ele


para meu léu*

"conheço do amor o pouco que me ensinaram
os olhos que me amaram".
Fédon

um mar revolto
um terremoto no leito
uma agonia mórbida
um estado anestésico de embriaguez
um folhear fosforescente
uma ostra que guarda a palidez da pérola
um aliento afrodisíaco
carnaval em corpus christi
fatal crepúsculo da alvorada
seda de palavras que dá sede de mergulho
som de violino se rindo
estrela desgrelhada
como um deus e seu falo forte
um cacto árido que se dá em flor
um louva-a-deus convalescente
uma ruga no pensamento
que gota a gota se desprende dos olhos
que gota a gota se esgota na boca
um gosto ácido
um gozo acre
todo spoke que pipoca garganta
colapso de intrigas
uma formosura, espécie extinta
um composto de édem
uma libido dos infernos
asfalto de sedimentos precipitados
solução de sentimentos insolúveis
de espasmos líricos e dramáticos
narciso diante do espelho
o reflexo de si e de um outro
uma presença na ausência
um devir inexistente
despótica matéria de paraíso e carne
emaranhado nos cabelos de Ophelia

um exu ao tucupi
baco que dança no tacacá

repique atabaque de iansã

Gato num apartamento vazio

Wislawa Szymborska

Morrer - isso não se faz a um gato.
Pois o que há de fazer um gato
num apartamento vazio.
Trepar pelas paredes.
Esfregar-se nos móveis.
Nada aqui parece mudado
e no entanto algo mudou.
Nada parece mexido
e no entanto está diferente.
E à noite a lâmpada já não se acende.

Ouvem-se passos na escada
mas não são aqueles.
A mão que põe o peixe no pratinho
também já não é a mesma.

Algo aqui não começa
na hora costumeira.
Algo não acontece
como deve.
Alguém esteve aqui e esteve,
e de repente desapareceu
e teima em não aparecer.

Cada armário foi vasculhado.
As prateleiras percorridas.
Explorações sobre o tapete nada mostraram.
Até uma regra foi quebrada
e os papéis remexidos.
Que mais se pode fazer.
Dormir e esperar.

Espera só ele voltar,
espera ele aparecer.
Vai aprender 
que isso não se faz a um gato.
Para junto dele
como quem não quer nada
devagarinho, 
sobre patas muito ofendidas.
E nada de pular miar no princípio.

Fonte: SZYMBORSKA, Wislawa. Poemas. Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien. São paulo: Companhia das Letras, 2011.