O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor [da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, [doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o [clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.
O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...
Recebe com simplicidade este presente do [acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos [séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras [espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.
O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.
Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.
***
ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record, 2001.
esse livro foi o presente de natal que eu me dei entre outros! talvez seja o livro mais político de Carlos Drummond de Andrade. foi lançado no final da segunda guerra mundial, em 1945. traz uma poesia cheia de lirismo e vigor marcada por aquele momento histórico do qual Drummond tanto se martirizou em tentar entender: para que tanta destruição? por que tanto ódio? para que as fábricas de mortos? esse poema em especial, que eu li hoje de manhã, me fez cair a ficha finalmente de que estamos em outro ano e que mais um ciclo se finalizou para que irremediavelmente outro comece. é assim que funciona a vida e é assim que colamos os cacos de nossa história para novamente nos reconhecer :: quem somos e o que viemos fazer aqui na terra :: ainda que existam fissuras no espírito por corrigir, ainda que o corpo esteja gasto de sentir. sentir o que? isso pouco importa! até a felicidade já traz em si os sinais de tristeza que por certo virá. e que estajamos fortes para enfrentá-la e para ciclicamente receber a felicidade de braços abertos de novo, com um copo de cerveja na mão e um sorriso maroto esboçado nos lábios, para festejá-la entre os verdadeiros amigos, em qualquer dia em que ela reapareça, nesse novo ano que recomeça.
muito axé em 2010!
***
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