O romance Anna Kariênina (1873-1877), de Liev Tolstói, tem um dos começos mais conhecidos da história da literatura e introduz o leitor em um dos dramas trágicos mais surpreendentes de todos os tempos:
"Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz, é infeliz à sua maneira.”
A narrativa central é a história de uma belíssima mulher da nobreza russa de São Petersburgo. Anna é casada e mãe de um filho, mas, numa viagem a Moscou, acaba se apaixonando por um oficial militar de família nobre e rica chamado Vrónski. Ela tenta o divórcio, mas o marido, homem político e influente do governo czarista, não aceita. Grávida de Vrónski, ela dá à luz a uma menina e decide abandonar o marido e o filho. Sai em viagem pela Europa com o amante. Na Itália, vive momentos felizes com sua nova família, mas quando volta, precisa enfrentar os obstáculos sociais marcados por sua nova condição de mulher divorciada. É massacrada por uma moralidade hipócrita e vive agora os tórridos momentos de paixão que, aos poucos, se esvai em emoções agudas (crises de ciúmes e suspeitas de traição) até culminar em um trágico final para a heroína.
O que move o romance é o amor sem o sentimentalismo que visa um ideal romântico. Antes, ele é considerado um sentimento natural e incontrolável, que é vencido pela violência das leis morais que preza os “bons” costumes, tudo para manter as máscaras sociais que escondem a essência do Ser de cada personagem e seus desejos mais viscerais.
Contextualizado na esplêndida sociedade pré-revolucionária de São Petersburgo e Moscou, Tolstói faz um exame social e político da Rússia, num tempo em que as ideias comunistas tomavam força e ocupavam o cerne das discussões intelectuais e filosóficas da época. Isso tudo sem tirar o foco na realização de um exame crítico da nobreza russa, decadente e hipócrita, que não conseguia mais enxergar além da superficialidade das aparências, e que minava aos poucos as próprias estruturas de seu poder no Estado.
As personagens, repletas de marcas autobiográficas, são construídas a partir de pessoas reais e os episódios recopilam cenas da vida de Tolstói. Um exemplo é o pedido de casamento que Liévin, alter ego de Tolstói, faz a Kitty, personagem inspirada em sua esposa. Liévin pode ser interpretado literalmente como o “outro eu” de Tolstói, como se fosse uma outra personalidade de si mesmo, uma identidade secreta que Tolstói de alguma forma sentia a necessidade de construir, talvez como uma maneira de alcançar o auto-conhecimento. Liévin é como se fosse a expressão máxima de sua personalidade, ainda que de forma não declarada pelo autor. Para isto, basta observar a semelhança dos nomes: Liévin (persongem) X Liev (autor), sem contar com a semelhança nos fatos vividos pela personagem e os narrados em sua biografia.
O fascínio deste livro é tudo isso e muito mais. Para quem gosta de ler volumosos romances – a edição da Cosac Naify gira em torno de 800 páginas – indico a leitura desta obra comovente e precisamente política e filosófica. É instigante ler um autor que observava a evolução do pensamento socialista na Rússia em fins do séc. XIX, anterior à revolução russa, num tempo presente de início do séc. XXI, considerando nosso contexto histórico marcado pela queda do muro de Berlim, a decadência do regime socialista e o domínio quase que global de um capitalismo selvagem. Ler o passado pode ser uma boa forma de aprofundar nossa leitura sobre o presente, para alcançar mais criticidade e consciência do mundo em que vivemos.
2 comentários:
Nossa Paty, você arrasou com esta resenha! Quando crescer quero escrever como você!!!!! Eu recomecei tímida no blog, mas não tenho o estilo, a profundidade e a soltura com a escrita que você imprime nos seus textos. A ver si de a poco me voy animando, sin muchas pretensiones... Lindo o post!
oh ju,
escrever é só técnica.
e claro que é também ter ideias para serem contadas, mas a técnica vem primeiro sem dúvida. pq ideias boas, todo mundo tem.
seu recomeço no blog foi lindo. adoro ler tudo o que vc posta lá e já sentia saudades.
qro mais para mim e pra vc tb.
quem tem coisa boa para dividir tem que colocar na roda.
um abraço grande cheio de carinho.
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