5.8.10

O Evangelho segundo Jesus Cristo :: de Saramago

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Não é preciso mencionar o tema desse romance de Saramago. O título por si já conta tudo e me estender em detalhes seria redundante demais diante de uma história que já é conhecida por nós desde antes de nos conhecermos por gente neste mundo cristão.

A novidade consiste na invenção de Saramago em nos apresentar um filho de Deus humanizado desde a sua concepção até a sua morte: rebelde, teimoso, frágil, corajoso, pretensioso, arrogante, mas antes de tudo amoroso. Como todos os mártires são personagens inventados, Jesus Cristo se nos apresenta como um mártir planejado meticulosamente pela mente fria de um Deus tirano que não conhece as dores e os prazeres humanos, mas que tem em comum um sentimento único compartilhado com todos os seres racionais criados por ele: o desejo de poder sobre a mente e a vontade dos seres humanos.

Em um dos capítulos finais – numa conversa entre Deus, Jesus e o Diabo em alto mar – não é difícil fazer uma associação de Deus com a sanha imperialista dos romanos, de Napoleão, Hittler, Stalin, ou mesmo Georg W. Bush (!?). Para expandir sua fama sobre a Terra, e consequentemente o seu poder, Deus justifica o holocausto de incontáveis vidas em seu Nome ao longo da sangrenta Era cristã com a célebre frase anacrônica de Maquiavel: “Os fins justificam os meios”.

Ética bélica para “honra e glória de seu Nome”: pessoas de diferentes idades e sexos serão torturadas, queimadas, crucificadas, devoradas por feras, apedrejadas, estupradas, degoladas, açoitadas, dessangradas, mutiladas, afogadas, humilhadas, esfaqueadas, flechadas, etc, etc, etc. eis a revelação feita a Jesus momentos antes de seu martíro.

Não quero aqui revelar cada surpresa, cada ironia que o romance resguarda, mas é importante pontuar que o autor consegue, numa engenhosidade estética e pelos meandros de uma narrativa inusitada aos olhos de qualquer herdeiro da cultura cristã, dessacralizar os evangelhos do novo testamento ao preencher as lacunas que as escrituras não explicam e ao reformular os moldes da história humana tão bem aprendida durante nossa vida escolar. Um exemplo concreto na narrativa, no primeiro caso, seria o que aconteceu na vida de Jesus quando este ainda era adolescente e como ele se tornou homem feito, fato oculto nas escrituras; no segundo caso, quando Deus conta o destino da humanidade, a pedido de Jesus, se caso ele cumprisse os desígnios da profecia e aceitasse morrer cravado na cruz se tornando o salvador de todos os pecadores que arrependidos se convertessem ao cristianismo, seja judeus ou gentios. É a "salvação" estendida a todos os povos da Terra, além de seu pretensioso povo escolhido.

Se Saramago consegue, em sua inventividade, romancear toda a vida de Jesus, ele não deixa de abrir outras lacunas para que nós, leitores, possamos preenchê-las com indagações sobre: Quem é Deus? Quem é o Diabo? O que é a verdade? Qual a função da culpa? Qual é a dor que mais nos atormenta? Assim, Saramago leva o leitor a reinterpretar por própria conta e risco uma versão particular da história do filho do homem aqui na terra.

E para mim, leitora que tem os olhos e o coração voltados para o amor incondicional, o clímax da narrativa não está na morte de Jesus sendo crucificado, mas sim no milagre do amor recíproco de Jesus de Nazaré por Maria de Magdala. A lealdade, a cumplicidade, a compreensão mútua por diversas vezes me emocionaram e guardo de memória uma das inúmeras declarações de amor que se fazem por si e pelo outro:

“Jesus foi juntar-se aos discípulos, e Maria de Magdala foi com ele, Olharei a tua sombra se não quiseres que te olhe a ti, disse-lhe, e ele respondeu, Quero estar onde a minha sombra estiver, se lá é que estiverem os teus olhos”. (grifo meu)

Não tem jeito, eu sou de fato uma romântica irremediável ;)

E quem nega seu próprio romantismo, é muito mais romântico que eu!

***
posologia para a leitura:
siga o pulso da narrativa que altera seu ritmo
à medida que o amor de Jesus
por Maria de Magdala e pela humanidade aumenta.


SARAMAGO, José. O Evangelho segundo Jesus Cristo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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4 comentários:

Julieta Sueldo Boedo disse...

Amei a resenha Pat!!! E já vou correndo comprar o livro, ainda não li esta obra do Saramago... Besos y que te mejores, cuidate porfa!!!!

patricia mc quade disse...

obrigada sempre ju! ter vc como leitora é uma honra. o livro vale muito a pena ler. é lindo! me surpreendeu tanto na estética literária e linguagem quanto na inventividade narrativa. saramago conta a mesma história que conhecemos de jesus a partir uma perspectiva outra, inesperada.

e pode deixar que estou quase boa.

te quiero nena.
besos.

Camila disse...

Amável. Lembra-me uma frase de Guimarães Rosa: ' Viver é muito perigoso. Querer o bem com demais força, de incerto jeito,pode já estar sendo querer o mal, por principiar' Adorei ter achado seus escritos, Patrícia.
Besos
Camila

patricia mc quade disse...

oi camila,
amável é vc no comentário.
obrigada pela visita.
a lembrança de Rosa, me caiu como uma luva hj.

un beso.