"Súbito ouvi uma palavra doméstica e veio-me a idéia de procurar a significação exata dela. Tratava-se do inferno. Minha mãe estranhou a cuirosidade: impossível um menino de seis anos, em idade de entrar na escola, ignorar aquilo.
O inferno era um nome feio que não devíamos pronunciar. Mas não era apenas isso. Exprimia um lugar ruim, para onde as pessoas mal-educadas mandavam outras, em discussões.
Instada, condescendeu. Afirmou que aquela terra era diferente das outras. Não havia lá plantas, nem currais, nem lojas, e os moradores, péssimos, torturados por demônios de rabo e chifres, viviam depois de mortos em fogueiras maiores que as de S. João e em tachas de breu derretido.
Fogueiras de S. João eu conhecia. Tinha-se feito uma diante da casa.
Também conhecia o breu derretido.
(...) como admitir que pessoas resistissem muitos anos a barricas cheias de breu derramadas em tachas fundas, sobre fogueiras de S. João?
— Eu queria saber se a senhora tinha estado lá.
— Os padres estiveram lá?
Minha mãe estragara a narração com uma incongruência. Assegurara que os diabos se davam bem na chama e na brasa. Desconhecia, porém a resistência das almas supliciadas. Dissera que elas suportariam padecimentos eternos. Logo insinuara que depois de estágio mais ou menos longo, se transformariam em diabos.
Reclamava uma testemunha, alguém que tivesse visto diabos chifrudos, almas nadando em breu. Ainda não me havia capacitado de que se descrevem perfeitamente coisas nunca vistas.
— Os padres estiveram lá? tornei a perguntar.
Minha mãe irritou-se, achou-me leviano e estúpido. Não tinham estado, claro que não tinham estado, mas eram pessoas instruídas, aprendiam tudo no seminário, nos livros. Senti forte decepção: as chamas eternas e as caldeiras medonhas esfriaram."
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RAMOS, Graciliano. Infância. Record: Rio de Janeiro, 1980. p. 78-80.
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