
“Se podes olhar, veja. Se podes ver, repara."
(epígrafe do livro Ensaio sobre a cegueira de Saramago)
um encontro com Saramago em um restaurante em Portugal faz dissolver toda a má impressão do não inicial impactante e Fernando Meireles é tratado de forma amável pelo escritor. esse fato rendeu ao diretor um sentimento de que o filme deveria suprir todas as expectativas de Saramago, tarefa difícil ao se pensar nas exigências estéticas desse autor de imagens fortes construídas com palavras, e também na dificuldade que há em se fazer uma boa versão de um clássico da literatura universal – sabemos que muitos filmes desse naipe ficam aos pés dos livros.

nas telas, o mundo branco da cegueira é transmitida pelos projetores das salas de cinema e nosso tão conhecido mundo urbano se esvai no branco do tempo, do espaço, da história dos personagens e até no branco de seus nomes. não se sabe ao certo quando, onde, como, porque e quem estava ali quando a cegueira coletiva aconteceu. o filme conseguiu a proeza de acompanhar a temática da obra literária sem se prender necessariamente a ela. questiona os valores e a moral humana, a ética nas inter-relações pessoais e incomoda o espectador que não consegue se posicionar diante do filme como um simples observador da narrativa que se constrói diante de seus olhos. a ironia sutil, porém nefasta, reside em cada personagem que se constrói e o espectador parece reconhecê-los sem conseguir admitir hipoteticamente o que virá a seguir.
de acordo com o diretor, o filme se divide como no teatro, em três atos: o primeiro apresenta os personagens se deparando com a cegueira pura e crua, sem explicação, pouco a pouco no tempo da narrativa, mas em um ritmo acelerado em tempo cronológico para o espectador, que acompanha com assombro e condoído o sofrimento e a agonia dos personagens, assim como acompanha o que irá acontecer dali para frente. esse efeito acontece ainda que o espectador saiba de forma premeditada o enredo da história.

no segundo ato os personagens se encontram no asilo, onde os cegos são abandonados à própria sorte e morte. recursos de filmagens com imagens distorcidas, opacas, nebulosas ou abstratas, provocam o efeito de aflição naqueles que assistem e daqueles personagens que de uma hora para a outra romperam a linha tênue entre a civilização e o caos, sem, contudo explorar cenas pesadas de violência, como por exemplo, o estupro das mulheres da ala 1 pelos devassos da ala 3 que se apoderam de toda comida do asilo e se propõem vendê-la por sexo.
essas cenas são fortes para o espectador que as acompanha, cala a nossa alma diante das vozes violentas dos agressores. a câmera sobe. fica o clima tenso e cruel do estupro e da morte pairando no ar. contudo, apesar de tudo isso ser muito mais que sugerido, não é o foco do filme. o objetivo é apresentar para quem assiste como a força súbita do poder indiscriminado se faz sentir com uma intensidade destruidora, como a fúria e a veemência da coação resulta cruel e egoísta subjugando o direito do outro, como o constrangimento físico e moral pode obrigar pessoas a se submeterem à vontade de outrem; enfim, como as relações de poder autoritário acontecem coagindo o oprimido que luta para sobreviver.

apesar de o filme tratar de uma enfermidade patológica, ele toca no aspecto sócio-político da cegueira metafórica em que vivemos. convida o espectador a refletir sobre sua própria cegueira carregada de imagens virtuais de ordem superficialmente estética, sem nos darmos conta da essência de quem somos enquanto seres humanos e de nossa atual superestrutura política e social ao qual estamos sempre sendo condicionados e controlados.
para tanto, Fernando Meirelles lavra a imaginação do espectador como um agricultor lavra a terra: limpa seu campo de visão viciado pela superficialidade, aduba as emoções sem extrapolar os recursos técnicos de gosto mercadológico da violência cinematográfica escancarada e cultiva a auto-reflexão sobre nossa condição de estar no mundo. se vale, então, de uma equipe forte: excelentes atores como Julianne Moore, Alice Braga, Gael García Bernal, Ysuke Iseya, Yoshino Kimura, Danny Glover, Mark Ruffalo e Don McKellar; uma fotografia primorosa e trilha sonora que se encaixou perfeitamente à atmosfera do filme criada pelo grupo Uakti.
preciso dizer mais alguma coisa?

Um comentário:
bonita, maravilha seu texto. aumentou um monte a minha ansiedade para ver o filme.
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