14.3.10

Louise Bourgeois: faço, desfaço, refaço :: de Denise Stoklos

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Fui assistir no Teatro Alterosa, este último sábado (13/03/2010), a uma peça de Denise Stoklos, Louise Bourgeois: faço, desfaço, refaço. Fiquei sabendo dessa atriz através da minha irmã que chegou a pouco de Florianópolis e me contou, a título de comentário, que havia assistido a outras peças dela em São Paulo. O curioso foi que a Margareth me falou de Denise Stoklos em um final de semana e no próximo (no caso este) a peça entrou em cartaz aqui em Beagá. Coincidências à parte, energias e premonições não se explicam, convidei outra amiga e fomos ver o espetáculo.

Denise Stoklos realmente impressiona no palco. Vitalidade, voz poderosa e presença física conseguem retratar de forma ampla e densa a trajetória e as reflexões da escultora Louise Bourgeois: “Meu espetáculo é a Louise inteirinha. É o livro dela completo (Destruição do pai/ Reconstrução do pai: Escritos e entrevistas) e o que pude viver com ela em Nova York, tentando entender o que diz o livro”, afirma a atriz.

O espetáculo foi todo pensado e construído em um trabalho de parceria com a escultora. Esta pequena-gigante senhora de 99 anos, ao contar suas experiências e dividir o seu cotidiano com Denise, não serviu somente de inspiração para a atriz na montagem desse espetáculo autobiográfico, mas participou ativamente de todo o processo de construção da obra. Ela, Louise Bourgeois, escreveu o texto, canto e rap que compõem a dramaturgia da peça, construiu o cenário — que na verdade é uma instalação de objetos que retratam o subconsciente particular da escultora — e ainda atuou como co-produtora do espetáculo junto a Denise Stoklos. A atriz, por sua vez, concebeu o espetáculo a partir da imensa admiração que cultivou por Louise Bougeois, traduziu e adaptou o texto dramatúrgico e assumiu os papéis de direção, coreografia, figurino, sonoplastia, iluminação, além de uma atuação solo no palco.

A peça é um monólogo, mas está longe de ser monótona. Além de incitar uma reflexão sobre os sentimentos humanos como eles são, arrancou risos da platéia apresentando na fala da personagem o humor negro da escultora. Sabemos da dificuldade que existe em conseguir montar um monólogo que prenda a atenção do público. O texto deve ser intenso e intrigante, além da presença física do ator precisar ser muito bem preparada e a força do personagem ser tão bem traduzida em gestos e voz a ponto de seduzir a platéia. No caso do monólogo Louise Bourgeois: faço, desfaço, refaço, Denise Stoklos alcança todas essas qualidades.

A personagem?! Denise Stoklos conseguiu captar em gestos e voz a lógica das pulsões de Louise; vinculou o espetáculo à vida/obra da escultora e teve como ponto de partida o livro de Bougeois: Destruição do Pai Reconstrução do Pai: escritos e entrevistas, ed. Cosac Naify. Assim como o livro, a peça aborda os grandes temas do conhecimento humano e da literatura. A arte não se apresenta nem no livro nem no espetáculo como uma organização de sistemas de arte propriamente ditos, mas em vida e desprendimento da aura em torno ao objeto de arte. Os recalques e embates da vida de Louise como o abandono e a ira, o desejo e a agressão, a comunicação e a inacessibilidade do outro são apresentados e vivificados no palco de forma visceral e fluida. Há o confronto permanente entre as pulsões de morte, as angústia e depressões, os medos, mas também as pulsões de vida. Louise Bourgeois é performatizada pela atriz de forma dolorosa e, ao mesmo tempo, triunfante. Parece que Stoklos vivencia a afirmação de si mesma quando vive a experiência da existência de Bourgeois. A erotização para a escultora é a forma plena e autêntica de comunicação de si com o outro. Na peça a atriz vivifica essa ideia erotizada da escultora no ato de transformar corpo e voz em arte, uma constante conversão física, que toca a conversão da energia da obra da escultora em força energética que emana do corpo da atriz. “Faço, desfaço, refaço” são as palavras de ordem da peça e o título foi sugerido pela própria Bourgeois. Esta tem o desejo de que sua arte seja um corpo erotizado que comunique emoções e pensamentos. Acredito que esse desejo tenha encontrado nesse espetáculo a sua materialidade e uma comunicação através do corpo da atriz Denise Stoklos em contato com o público. Quem assistiu a peça, com certeza, sabe do que estou falando.

O drama?! Esta peça intensifica a referência ao sujeito Louise Bourgeois. Esta por sua vez retira a figura feminina das sombras da história da arte. Denise Stoklos apresenta em carne e espírito esse sujeito duo de Bourgeois: a mulher e a artista excêntrica. Duas sem deixar de ser uma. A aranha é um signo trabalhado pela escultora e mencionada constantemente durante o espetáculo como uma referência à figura materna. Neste caso a teia passa a tomar uma importância muito maior que a imensa aranha das obras de Bourgeois. Teia enquanto texto, enquanto trama, enquanto drama, enquanto vida vivida e tecida pelas mãos femininas e maternas, as que engendram, que envolvem, que enredam.

O cenário?! Antes de tudo, uma instalação. Obras da escultora compõem o cenário do espetáculo. Do lado esquerdo e direito dois objetos, uma escada e um espelho oval. No centro uma célula, ou cela, em forma de octógono (signo da teia?) rodeada de tela de arame. Um penetrável onde são encenados os labirintos sensoriais da escultora que por sua vez são vivenciados pela atriz e apenas observados à distância pelos espectadores, o que considero uma pena! Um espelho redondo no teto da célula em posição levemente inclinada, apresenta outros pontos de vista sobre o local da encenação. Ali dentro, dizem, estão alguns objetos do ateliê de Louise, como ferramentas e moldes de suas esculturas.

Enfim, nesta experiência espetacular, podemos conhecer um pouco mais sobre a vida dessa escultora rara e polêmica que completa seu centenário ano que vem (* 25/12/1911), pensar na função do objeto de arte para nós, sobreviventes do séc. XXI e compreender com maior profundidade as contradições que envolvem estas duas artistas em particular que são dotadas de uma percepção da realidade inconscia e que percorrem os recônditos sentimentos recalcados de todos nós. Elas fazem, desfazem e refazem cada pessoa que ali as assiste, e este é o maior espetáculo.

(foto de San Francisco Chronicle)

“A arte é um privilégio, uma benção, um alívio. Nascer artista é ao mesmo tempo um privilégio e uma maldição. Privilégio porque quer dizer que você é um favorito, que o que você faz não é completamente seu crédito, nem se deve completamente a você, mas um favor que lhe foi concedido. É um privilégio fantástico ter acesso ao inconsciente. Eu tive de merecer esse privilégio e exercê-lo.” (Louise Bourgeois)

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2 comentários:

Sueli disse...

Fiquei encantada com essa sua resenha!
Embora no passado, viajei no seu verbo.
Parabéns! Você, assim como Denise, dignificam a obra e a pessoa de Louise.

patricia mc quade disse...

olá sueli,
que bom que gostou da resenha.
este espetáculo marcou minha percepção de mundo e a transformou.
estas artistas merecem nossos aplausos de pé e ininterruptamente.
um abraço