14.7.09

HYSTERIA :: grupo XIX de teatro

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segunda-feira, 13 de julho de 2009, Hystería – do Grupo XIX de Teatro de são paulo – foi novamente encenada em bh. eu havia assistido pela primeira vez essa peça em 2006 no FIT (festival internacional de teatro) evento que ocorre a cada dois anos na capital mineira. na época o prédio escolhido para o espetáculo foi o museu mineiro, monumento histórico situado na av. joão pinheiro, centro. dessa vez, o lugar foi um prédio de arquitetura neo-clássica – hoje ocupado pelo SESC Minas Gerais –, construído provavelmente na fundação da cidade, situado à rua caetés, 603 - centro. curiosidade interessante: o ano que marca o tempo ficcional da peça é 1897, a mesma data de transferência da capital mineira para belo horizonte. esse fato também me fez lembrar do êxodo rural que Minas Gerais sofreu com a construção da nova capital, fato que ocorria também em todo o Brasil com o crescimento das grandes cidades como são paulo e rio de janeiro (cidade ficcional onde acontece o enredo). coincidência ou não, esse foi o primeiro detalhe da peça que me chamou a atenção.


mas outras marcas históricas pode-se ler nesse espetáculo: a abolição da escravatura, o preconceito étnico contra os negros, as ideias positivistas que impulsionavam as descobertas científicas, a razão em supressão à emoção, a descoberta da psicanálise, o advento recente da república, a denúncia do infanticídio – crianças abandonadas nas Rodas de igrejas – ato que evitava os escândalos morais das mães-solteiras brancas, muitas vezes vítimas de estupro, e , principalmente o foco da peça, a repressão da mulher e o seu papel social em fins do séc. XIX:


“Falamos também de um tempo onde as vontades e decisões femininas, no seio familiar, eram secundárias perante a posição tomada pelo chefe da família. Assim, as mulheres acabavam por repreender (principalmente através da cultura da religião católica) e esconder suas vontades e seus desejos reais. Falamos de um momento de extrema repreensão feminina, onde o hospício vinha a ser uma punição e não um tratamento para o bem-estar. Situação essa favorável aos surtos histéricos, que também nos leva a defender a idéia de que existe muita verdade atrás da histeria. Como cita Breton Aragon; ‘A histeria não é um fenômeno patológico e pode ser considerada, em todos os sentidos, um meio supremo de expressão’ [paris, 1918]." (fragmento retirado do folheto de apresentação da peça Hystería do Grupo XIX de Teatro)

o espaço cênico é peculiar nesse espetáculo. o grupo sempre busca ocupar lugares de arquitetura correspondente à época da peça. totalmente alternativo, o espaço escolhido nunca é uma sala de teatro, o que me lembra a proposta do teatro pobre de grotowski. mas sim, salões amplos onde bancos de madeira estão dispostos de forma circular para o público feminino e uma arquibancada que fecha um dos lados do círculo é reservado ao público masculino. o ambiente é desprovido de recursos cênicos, o cenário se dá a partir da própria arquitetura do lugar – chão de tábua corrida, pilastras, janelas dispostas ao longo das paredes e que ocupam também quase a sua altura – enfim, espaço propriamente ambientado a um sanatório no clima do séc. XIX.

sem recursos sonoros de sonoplastia ou microfones, as atrizes se valem apenas de suas vozes femininas e ecos que ressoam os gritos inesperados de espanto, dor ou lamentos. a iluminação: somente a luz natural vespertina que entra pelas janelas que se mantém fechadas durante todo o espetáculo. o calor incomoda e em uma hora se torna insuportável, suamos juntos, respiramos o hálito daquele ambiente que vai se tornando aos poucos insalubre. antes de entrar no sanatório feminino, o público é separado: os homens na arquibancada – eles entram primeiro – e as mulheres vão ocupar os bancos de madeira e o chão fechando a arena do espetáculo. ao entrar, somos recebidas pela enfermeira (mara helleno) que nos trata como internas do lugar, ou seja, diagnosticadas todas como histéricas, também personagens involuntárias da obra. outras quatro atrizes estão presentes no ato cênico: uma sentada ao centro da arena de feição acriançada; outra colada ora às paredes, ora às janelas de vidro; uma outra sentada em um dos bancos de madeira aparenta docilidade e submissão e a última transita com familiaridade ajudando as mulheres-público a ocupar seus lugares de acordo com as órdens da enfermeira-chefe.

a peça acontece em um giro de 360º, todo o espaço é aproveitado para a encenação do enredo. as atuações das atrizes acontecem entre as mulheres da platéia, ao lado delas, em frente, atrás. a platéia é disposta para que haja um contraposição entre os gêneros: na sala de apresentação, os homens são os espectadores e tem um olhar distanciado sobre as cenas que discorrem no salão, assumem o papel que a sociedade lhes impõe, ou seja, o de observadores dos surtos e histerias, aqueles que avaliam, que compreendem ou que recriminam os desvarios femininos; as mulheres estão no olho do furacão, fazem parte do cenário e muitas são convidadas a encenarem junto às atrizes e assumem o papel de coadjuvantes do espetáculo: dão depoimentos, respondem a perguntas às vezes íntimas, declamam poesias, são diagnosticadas de insanidade, dançam pelo espaço cênico em rodas e folias, são repreendidas pela enfermeira-chefe, uma ou outra se manifesta com espontaneidade. esse happening garante que cada apresentação da peça seja única, pois as interações acontecem muitas vezes de forma livre, criando uma atmosfera de improvisações e surpresas, tanto para o público como para as atrizes. é o diálogo concreto e viceral entre atrizes e mulheres da platéia que faz o diferencial dessa peça. em especial nesse dia, uma senhora de terceira idade chamada Inês, com a qual conversei momentos antes de iniciar a peça, talvez identificando a cena que acabava de assistir com algo de sua vivência, chamou a atenção das pessoas com uma fala irônica dirigida à enfermeira: “sua benção, madre-superiora!”, talvez fazia ali uma alusão aos colégios internos católicos que educavam as meninas a serem submissas à família, à igreja e ao Estado, esferas de manutenção do poder patriarcal.

em uma conversa informal depois do espetáculo, perguntei sobre o processo pelo qual passou a construção das personagens. uma atriz me relatou, então, que elas foram nascendo a partir de leituras de diversos materiais de pesquisa, entre eles: depoimentos (história oral de tias, avós, mães, etc.); notícias de jornal, boletins de ocorrência e relatos médicos de casos psiquiátricos da época; estudos antropológicos da condição feminina ao longo dos tempos (a bibliografia lida para a pesquisa está no site oficial do grupo e pode ser consultada por quem se interessar). o figurino foi criado à moda do séc. XIX, a partir de vestidos de noivas, de primeira comunhão, de batizados de membros da família dessas atrizes.

sobre as personagens!

cada personagem possui uma personalidade, um temperamento, que se apresenta dócil e terno, mas que repentinamente se transforma em crises emocionais, com explosões psicológicas e atos de agressividade subversiva:

CLARA– interpretada pela atriz janaína leite – quando criança havia sido abandonada na Roda, fruto de um ato sexual considerado impuro pela igreja e sociedade. analfabeta e totalmente infantilizada, recusa-se em crescer e tornar-se mulher. agarra-se à deus e busca a purificação de sua alma, penaliza-se por um passado que desconhece. coleciona bilhetes que acompanham as crianças que são deixadas nas Rodas à própria sorte por mães anônimas.

HERCÍLIA – interpretada por evelyn klein – rebelde irremediável, é afastada da sociedade e internada no sanatório para não contaminar as mulheres com sua mentalidade revolucionária e avançada para a época. possui uma educação formal, conhece a literatura e impressiona o público com declamações de poemas de L. Brant (pseudônimo de hercília?) e Safo de Lesbos. se destaca por uma obstinação excessiva e um temperamento indomável. diversas vezes é castigada por isso. passa várias cenas escrevendo em paredes e no chão do lugar. é a personagem pivô das cenas de insubordinação, desobediência às regras e levantes entre as internas.

M.J. – interpretada por juliana sanches – mulher de tendências lascivas, sofre de vapores (sensualidade sem controle, fora dos parâmetros sociais) que a induzem a práticas sexuais consideradas devassas. conta seus casos amorosos de forma voluptuosa e diz que o coito é algo essencial a toda mulher. afirma todo o tempo que aquele é seu último dia no sanatório, pois se diz curada pelo dr. Mendes. espera por seu marido joão que irá buscá-la àquele dia. a espera já é entendida pela platéia como eterna.

MARIA TOURINHO – interpretada por sara antunes – mulher dócil e gentil, educada para o casamento. aprendeu dotes importantes a uma mulher devota ao lar: costurou seu próprio vestido de noiva, borda, cozinha, toca piano, zela pelos filhos. legitima a submissão da mulher ao homem. ao final da peça revela seu lado negro de forma surpreendente: é a autora do assassinato do marido. presa ao passado, conta constantemente sobre sua criação severa quando menina e do sentimento de maternidade que continua a nutrir, ambas vivências marcadas em seus gestos e comportamento.

NINI – interpretada por mara helleno – enfermeira-chefe. solteirona que se dedica aos cuidados de outros a fim de sentir-se útil. apesar de enérgica, se apresenta também afetiva para com as moças do sanatório. possui segredos íntimos, desejos secretos e sonhos frustrados, que são registrados em seu caderno-goiabada (referência ao caderno de receitas escrito a mão pelas mulheres, tradição antiga passada de geração em geração). enfatiza ser diferente das demais internas, mas no fim, identifica-se na mesma solidão e angustias sofridas por todas que ali estão.

onde a peça nos toca?

talvez nessa memória corporal feminina que atravessa os séculos de história da humanidade e que repercute nas culpas e ações de autosabotagem da mulher. por mais que os tempos modernos sejam outros, por mais que as mulheres tenham conquistado liberdades sociais na esfera sexual e profissional, carregamos ainda o estigma do matrimônio, da maternidade, do zelo pelo lar, do sonho em encontrar “o príncipe encantado”, e da somatória de todas essas frustrações. pessoas ainda se sentem indignadas ao ouvir que uma mulher decidiu por não casar-se, por não ter filhos, por não se submeter às exigências sociais patriarcais. hoje a histería se chama TPM e é comum escutar de terceiros que o motivo de alguma indignação exposta por uma mulher através de suas reivindicações é resultado de uma tensão pré-menstrual. discurso muito utilizado para neutralizar o que ali foi dito por esse ser feminino, o que foi reivindicado por ela enquanto direito humano. essa ação impossibilita qualquer reflexão sobre o que foi reivindicado, impossibilita qualquer alteração social em favor da mulher do séc. XXI. a peça proporciona que esse discurso, que anula os movimentos políticos femininos, seja enfim desmascarado, que a sociedade mostre a sua cara assim como é: ainda machista e opressora, apesar de todos as conquistas feministas. como afirma o próprio diretor luiz fernando marques antes de iniciar o debate sobre a peça: “a histería não é aqui considerada um mal patológico, mas sim uma consequência de um distúrbio social”.

ao final da peça é anunciado por uma das atrizes a chuva que talvez lavará todo esse mal social que ofende os direitos humanos das mulheres. as janelas e portas são abertas e podemos respirar, quem sabe, o advento de uma nova era livre dos preceitos e parâmetros masculinos de poder sobre a mulher.

a comoção foi geral. os homens nos olhavam ainda com espectativa, algumas mulheres da platéia choravam, outras se entreolhavam com os corações apertados de angustia e cumplicidade. minha amiga que me acompanhava, heloísa lopes, deitou sua cabeça sobre meus braços cruzados nos joelhos e eu retribui o mesmo movimento de afeto e lhe dei um beijo entre os cabelos. compartilhamos por um momento dessa mesma dor:

“Na verdade não importa se é séc. XIX ou séc. XX, acho que é só um espelho mesmo para a gente se ver e, às vezes, se colocar [esse espelho] longe, na verdade traz mais para perto. Todas somos mulheres e alguém nos diz que somos histéricas”. (depoimento de uma mulher ao final da peça que aparece no vídeo publicado abaixo).



as atuações no espetáculo são primorosas, as atrizes desempenham seus papéis de forma muito intensa e possuem um trabalho corporal digno de elogios. parece que cada personagem nasce dentro de cada uma delas, e atuam no palco em partners (atriz/personagem) com a intimidade que tem a mãe com um filho, essa ação interna termina no gesto, na linha de seus braços e mãos, de seus corpos e voz. a direção alcançou, através da simplicidade dos recursos cênicos, efeitos afetivos e analíticos ao mesmo tempo. é uma experiência única esse espetáculo e as reflexões tiradas a partir dele são inesgotáveis. é possível fazer também uma leitura meta-teatral pois a obra trabalha elementos do teatro dramático do séc. XIX — identificação do público com as cenas suscitando comoção — assim como as teorias que surgiram no séc. XX a partir de brecht, becket, arthaud e, no meu ponto de vista, principalmente grotowski. aqui relato as minhas observações através de uma leitura livre de teorias. vale a pena conferir!

Dez mandamentos da mulher:

1. Amai a vosso marido sobre todas as coisas.
2. Não lhes jureis falso.
3. Preparai-lhe dias de festa.
4. Amai-o mais do que a vosso pai e vossa mãe.
5. Não o atormenteis com exigências, caprichos e amuos.
6. Não o enganeis.
7. Não lhe subtraias dinheiro, nem gasteis este com futilidades.
8. Não resmungueis, nem finjais ataques nervosos.
9. Não desejeis mais do que um próximo, e que este seja o teu marido.
10. Não exijais luxo e não vos detenhais diante das vitrines.

Estes dez mandamentos devem ser lidos pelas mulheres doze vezes por dia, e depois ser bem guardados na caixinha de toillete. (Jornal do Comércio, 1888)


(retirado do folheto de apresentação da peça Hystería do Grupo XIX de Teatro)

para mais informações sobre o trabalho do grupo e outras obras, acesse o site:

bibliografia consultada:

folheto de apresentação da peça Hystería do grupo XIX de teatro.
livro que reúne os textos dramatúrgicos, fotos e cometários críticos das peças Hystería e Hygiene editado pelo grupo e vendido a um preço simbólico de 10 reais (vale a pena adquirir o seu).
site oficial do grupo: www.grupoxixdeteatro.ato.br

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