

mas outras marcas históricas pode-se ler nesse espetáculo: a abolição da escravatura, o preconceito étnico contra os negros, as ideias positivistas que impulsionavam as descobertas científicas, a razão em supressão à emoção, a descoberta da psicanálise, o advento recente da república, a denúncia do infanticídio – crianças abandonadas nas Rodas de igrejas – ato que evitava os escândalos morais das mães-solteiras brancas, muitas vezes vítimas de estupro, e , principalmente o foco da peça, a repressão da mulher e o seu papel social em fins do séc. XIX:

“Falamos também de um tempo onde as vontades e decisões femininas, no seio familiar, eram secundárias perante a posição tomada pelo chefe da família. Assim, as mulheres acabavam por repreender (principalmente através da cultura da religião católica) e esconder suas vontades e seus desejos reais. Falamos de um momento de extrema repreensão feminina, onde o hospício vinha a ser uma punição e não um tratamento para o bem-estar. Situação essa favorável aos surtos histéricos, que também nos leva a defender a idéia de que existe muita verdade atrás da histeria. Como cita Breton Aragon; ‘A histeria não é um fenômeno patológico e pode ser considerada, em todos os sentidos, um meio supremo de expressão’ [paris, 1918]." (fragmento retirado do folheto de apresentação da peça Hystería do Grupo XIX de Teatro)



sobre as personagens!
CLARA– interpretada pela atriz janaína leite – quando criança havia sido abandonada na Roda, fruto de um ato sexual considerado impuro pela igreja e sociedade. analfabeta e totalmente infantilizada, recusa-se em crescer e tornar-se mulher. agarra-se à deus e busca a purificação de sua alma, penaliza-se por um passado que desconhece. coleciona bilhetes que acompanham as crianças que são deixadas nas Rodas à própria sorte por mães anônimas.
HERCÍLIA – interpretada por evelyn klein – rebelde irremediável, é afastada da sociedade e internada no sanatório para não contaminar as mulheres com sua mentalidade revolucionária e avançada para a época. possui uma educação formal, conhece a literatura e impressiona o público com declamações de poemas de L. Brant (pseudônimo de hercília?) e Safo de Lesbos. se destaca por uma obstinação excessiva e um temperamento indomável. diversas vezes é castigada por isso. passa várias cenas escrevendo em paredes e no chão do lugar. é a personagem pivô das cenas de insubordinação, desobediência às regras e levantes entre as internas.
MARIA TOURINHO – interpretada por sara antunes – mulher dócil e gentil, educada para o casamento. aprendeu dotes importantes a uma mulher devota ao lar: costurou seu próprio vestido de noiva, borda, cozinha, toca piano, zela pelos filhos. legitima a submissão da mulher ao homem. ao final da peça revela seu lado negro de forma surpreendente: é a autora do assassinato do marido. presa ao passado, conta constantemente sobre sua criação severa quando menina e do sentimento de maternidade que continua a nutrir, ambas vivências marcadas em seus gestos e comportamento.
NINI – interpretada por mara helleno – enfermeira-chefe. solteirona que se dedica aos cuidados de outros a fim de sentir-se útil. apesar de enérgica, se apresenta também afetiva para com as moças do sanatório. possui segredos íntimos, desejos secretos e sonhos frustrados, que são registrados em seu caderno-goiabada (referência ao caderno de receitas escrito a mão pelas mulheres, tradição antiga passada de geração em geração). enfatiza ser diferente das demais internas, mas no fim, identifica-se na mesma solidão e angustias sofridas por todas que ali estão.
onde a peça nos toca?

ao final da peça é anunciado por uma das atrizes a chuva que talvez lavará todo esse mal social que ofende os direitos humanos das mulheres. as janelas e portas são abertas e podemos respirar, quem sabe, o advento de uma nova era livre dos preceitos e parâmetros masculinos de poder sobre a mulher.
a comoção foi geral. os homens nos olhavam ainda com espectativa, algumas mulheres da platéia choravam, outras se entreolhavam com os corações apertados de angustia e cumplicidade. minha amiga que me acompanhava, heloísa lopes, deitou sua cabeça sobre meus braços cruzados nos joelhos e eu retribui o mesmo movimento de afeto e lhe dei um beijo entre os cabelos. compartilhamos por um momento dessa mesma dor:
“Na verdade não importa se é séc. XIX ou séc. XX, acho que é só um espelho mesmo para a gente se ver e, às vezes, se colocar [esse espelho] longe, na verdade traz mais para perto. Todas somos mulheres e alguém nos diz que somos histéricas”. (depoimento de uma mulher ao final da peça que aparece no vídeo publicado abaixo).
as atuações no espetáculo são primorosas, as atrizes desempenham seus papéis de forma muito intensa e possuem um trabalho corporal digno de elogios. parece que cada personagem nasce dentro de cada uma delas, e atuam no palco em partners (atriz/personagem) com a intimidade que tem a mãe com um filho, essa ação interna termina no gesto, na linha de seus braços e mãos, de seus corpos e voz. a direção alcançou, através da simplicidade dos recursos cênicos, efeitos afetivos e analíticos ao mesmo tempo. é uma experiência única esse espetáculo e as reflexões tiradas a partir dele são inesgotáveis. é possível fazer também uma leitura meta-teatral pois a obra trabalha elementos do teatro dramático do séc. XIX — identificação do público com as cenas suscitando comoção — assim como as teorias que surgiram no séc. XX a partir de brecht, becket, arthaud e, no meu ponto de vista, principalmente grotowski. aqui relato as minhas observações através de uma leitura livre de teorias. vale a pena conferir!
Dez mandamentos da mulher:
1. Amai a vosso marido sobre todas as coisas.
2. Não lhes jureis falso.
3. Preparai-lhe dias de festa.
4. Amai-o mais do que a vosso pai e vossa mãe.
5. Não o atormenteis com exigências, caprichos e amuos.
6. Não o enganeis.
7. Não lhe subtraias dinheiro, nem gasteis este com futilidades.
8. Não resmungueis, nem finjais ataques nervosos.
9. Não desejeis mais do que um próximo, e que este seja o teu marido.
10. Não exijais luxo e não vos detenhais diante das vitrines.
Estes dez mandamentos devem ser lidos pelas mulheres doze vezes por dia, e depois ser bem guardados na caixinha de toillete. (Jornal do Comércio, 1888)
(retirado do folheto de apresentação da peça Hystería do Grupo XIX de Teatro)
para mais informações sobre o trabalho do grupo e outras obras, acesse o site:
bibliografia consultada:
folheto de apresentação da peça Hystería do grupo XIX de teatro.
livro que reúne os textos dramatúrgicos, fotos e cometários críticos das peças Hystería e Hygiene editado pelo grupo e vendido a um preço simbólico de 10 reais (vale a pena adquirir o seu).
site oficial do grupo: www.grupoxixdeteatro.ato.br
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