26.9.09

um tal senhor Laércio



Pediu licença e sentou-se entre a janela do ônibus e um senhor de olhar triste. Abriu um pacote de batata frita e, antes de servir-se da primeira e obedecendo a um impulso que não lhe era natural, ofereceu o que seria seu almoço do dia ao senhor. Ele agradeceu com um gesto de negação, dizendo que já havia cometido o seu primeiro pecado do dia antes de sair de casa no almoço: a gula. Que o próximo fosse uma variação de outro pecado capital. Sorriu a moça do senso de humor daquele senhor e seu sorriso abriu espaço para aprofundar uma conversa que duraria todo o trajeto do ônibus até o centro da cidade, onde se despediriam para provavelmente nunca mais se verem.

Era o fim de uma manhã cinzenta, as primeiras chuvas da primavera entristeciam aquele dia e parecia que a alegria de uma prosa agradável só acontecia naquele espaço do ônibus. Os transeuntes e motoristas da cidade pareciam taciturnos, nublados como o tempo.

Ele continuou o diálogo dando conselhos sobre uma alimentação saudável, dizendo que a saúde era uma só e que devia-se cuidar muito bem dela. Ela ouvia os conselhos com o respeito que sempre dedicava aos mais velhos, de forma benevolente, sem retrucar.

Contou ele sobre o destino de sua viagem naquele ônibus: tratamento de uma osteoporose que danava o seu joelho já cansado de carregar o peso de seu velho corpo. “Você já ouviu falar de um centro de massagem que cura vários problemas de dores físicas com um colchão que veio da Coréia do Sul?” — a moça movimentou a cabeça para dizer um não. “Pois bem, deixe-me contar a você do que se trata.” continuou o senhor de forma contundente em estender a conversa. “Esse colchão possui em seu interior pedras de jade que dizem ter o poder de curar os vários problemas orgânicos que herdamos da vida sedentária nas grandes cidades.” — E contou com os dedos: “cálculo renal, úlceras gastrintestinais, desvios na coluna, males do fígado, enxaquecas e dizem que até câncer. Eu tenho muita fé no tratamento, pois sou a prova física e viva do poder de cura dessas pedras. Antes eu não conseguia movimentar o meu joelho e o peso do meu corpo era o próprio peso do cansaço da vida que ele já não suportava. Hoje posso dizer que escalaria o monte Everest sem nenhum problema.” — a moça seguia ouvindo em silêncio já esquecida do livro Cem anos de solidão que trazia na bolsa para a leitura na viagem.

Depois de terminar a batata e guardar a embalagem vazia na bolsa, o senhor retirou uma garrafa de água de uma sacola e ofereceu à moça. Ela primeiro fez um gesto de que não precisava e ele: “Não seja orgulhosa, depois dessa batata tenho certeza que sente sede!” — e era verdade, sentia a secura do sal na boca; acabou por aceitar a gentileza. Tomou alguns goles sedentos e devolveu a garrafa ao senhor. Ele tornou a abri-la e bebeu outros goles dizendo que era a melhor água que já havia tomado na vida.

A conversa se estendeu sem preocupações sobre o que estava sendo dito ou sugerido. E tudo o que a moça falava sobre acontecimentos políticos do Brasil e do mundo o velhote tinha argumentações fundamentadas em sua experiência de vida: a influenza: "a maior doença da humaninda é o próprio ser humano"; o golpe de militar em Honduras: "o ser humano não aprende com os próprios erros, para que serve a história se não para isso?"; a guerra na faixa de Gaza: "o pior fascista é o judeu!"; as eleições para presidente no próximo ano e o governo Lula: "eu vibrei com a vitória de Lula e votaria nele de novo se ele fosse reeleito, não consigo pensar em um candidato digno para substitui-lo no Brasil"; o caso Gilmar Dantas: "vergonha de uma política que se diz transparente"; o presidente Obama eleito nos EUA: "lobo em pele de cordeiro"; o aquecimento global e o desenvolvimento sustentável: "até quando o ser humano lutará contra a natureza? o capitalismo é selvageria e não progresso!". Os assuntos se desenrolavam tão naturalmente que os dois nem se deram conta do trânsito na avenida Amazonas, tampouco do dobro de tempo que ganharam nesta viagem. A moça só olharia o relógio e se espantaria com as horas quando se visse novamente só e atrasada para o trabalho.

Quando se esgotou esses assuntos gerais, ele voltou à cama de pedras de jade. Disse que esse colchão mágico lhe havia trazido de volta o apetite sexual e era uma pena sua esposa, que vivia contando rezas nas contas de um rosário, não gostasse da ‘coisa’. Relatou desejos íntimos e falou que tudo funcionava aqui: apontou para o centro da testa, em um ponto entre os olhos. “Fantasia!” — falou entusiasmado, “é aqui que eu encontro o meu sexo. Desse jeito tenho todas as mulheres que desejo.”

Nessa hora a moça sentiu seu rosto corar, mas fingiu não entender o que ali estava sendo revelado. Ele então proceguiu: "Quando você entrou no ônibus eu firmei em mim pedindo para que escolhesse sentar ao meu lado. Veja só, o ônibus está vazio e você veio atender ao meu pedido. Tudo o que desejar peça com convicção."

Depois de uma hora e meia de conversa veio um breve silencio e, enfim, o destino dela. Falou que desceria no próximo ponto. Estendeu a mão direita em direção a ele para despedir-se quando esta foi acolhida também com a mão esquerda do homem pousada sobre a sua num gesto de guardá-la para si. Sentiram ambos um calor inexplicável naquele dia cinzento que soprava levemente uma friagem de fim de inverno. Ele disse com olhos em lampejos umedecidos mesmo sem ser indagado:

“Meu nome é Laércio, mas não me diga o seu. Para mim, você é Formosa!” — e continuou: “Meu maior inimigo é o tempo. Quisera eu ter nascido pelo menos quarenta anos depois de 1925, assim eu pediria seu telefone e encontraria você para conversar novamente. Depois eu a convidaria para fazer amor comigo em uma cama com colchão de pedras de jade! Tenho certeza que as suas e as minhas dores seriam curadas... Vai em paz menina, que os anjos guardem a beleza que você é por dentro e por fora.”

Ela, completamente cor-de-rosa, agradeceu a gentileza e se despediu apenas com mais um sorriso em resignação. Já na calçada, guardou em seu bolso um cartão com o endereço da casa de massagem que o senhor Laércio lhe entregou antes de sua descida do ônibus e deu um aceno de derradeira despedida. Foi quando uma rajada de vento embaraçou seus cabelos tampando-lhe o rosto. E essa foi a última imagem que ele guardou dela.

gravura de Kadu Veríssimo

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obs: A cama com colchão de pedras de jade é na verdade uma cama de massagem baseada em uma técnica coreana conhecida como CERAGEM. Em Beagá o endereço para as sessões é rua: Guajajaras, 460 A - Centro (atendimento por ordem de chegada: das 7:30h às 17h - não precisa marcar horário) . As massagens são gratuitas e o paciente deve levar seu próprio lençol e virol para permanecer 40 minutos em uma das camas que, por si só, fazem o tratamento por meio de um equipamento eletrônico que massageia as costas. São indicadas até 120 sessões para alcançar os benefícios físicos ao paciente.

Tudo isso foi um passarinho quem me contou! ;)

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2 comentários:

Kadu Veríssimo disse...

Olá Patrícia,
sou o Kadu, auor da gravura acima,
fico feliz que tenha gostado dela,
fique a vointade para usa-la aqui
Parabéns pelo blog
Kadu Veríssimo

patricia mc quade disse...

gracias!
: )