18.11.08

Adiamento :: fernando pessoa


Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...

Álvaro de Campos

***

fim de ano, muitos projetos escolares por cumprir, centenas de avaliações por corrigir e dezenas de páginas de relatórios por escrever. sim! só depois de amanhã pensarei no trabalho que deveria ter finalizado e entregue ontem. o meu sono é mais urgente. o meu prazer é inadiável. paro tudo só para escrever o que não preciso, só para ler o que não tem necessidade prática imediata, só para cantar a noite e a lua, o sol e o azul de me querer livre. depois de amanhã darei conta de todos os meus compromissos burocráticos de praticidade sufocante. 

esse poema é a síntese do meu estado de espírito hoje, ontem e anteontem. depois de amanhã sentirei a encrenca em que eu me meti. e se sobreviver às cobranças e broncas, brindarei o porvir, sim o porvir de adiar tudo de novo.

obrigada pessoa!

Um comentário:

Edson Lariucci disse...

Olha só!! Espetáculo de Texto!!! existem dias que é melhor deixar as horas passarem... sem pressa mesmo... há coisas... muitas coisas... que o depois resolve melhor... srsr

Adorei o poema!!! Quando puder leia um poema meu intitulado Ano Novo, esta nos aqruivos do blog, e depois me diga o que achou...

Abraços!