17.5.09

espetáculo :: Yepá, avó do Mundo

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na última terça-feira fui levar meus alunos de 08 a 10 anos da escola da serra para ver a um espetáculo no teatro marília. já tinha algum conhecimento prévio sobre a temática e algumas referências de que era uma peça interessante e muito bem feita. mas, de longe, não esperava um espetáculo tão bonito de ver com os olhos, escutar com os ouvidos e sentir com o coração. todos os meus sentidos ficaram aguçados para não perder nada daquilo, que desde o início, enlaçou a atenção não só minha, mas da maioria das crianças do teatro que ali assistiam. e olha que não eram poucas, dentre os 38 alunos de minhas turmas, havia mais ou menos ali umas 120 crianças somadas, de 01 a 12 anos, todas hiperativas por estarem fora do ambiente escolar de costume. excursão sempre mobiliza a escola inteira e as crianças ficam como que ligadas a uma potência 220 v. mas na hora da peça, quando começou o espetáculo, a maioria se fez silente para degustar cada pedacinho daquele universo mágico.


três atrizes surgem no fundo do teatro, de forma inesperada, e cantam lindamente ao descerem as escadas laterais da platéia ao toque de seus tambores. uma surpresa para todos, pois os olhares estavam voltados para o palco e o início começava em um lugar inusitado para as crianças que agitadas buscavam de onde vinham as vozes de encantamento que entoavam esse canto. as carinhas que eu observava iam se acendendo uma a uma e os sorrisos iam brotando como pipoca quando encontravam enfim a pintura em movimento das moças. ao chegar no palco, as três Marias contam a sua história.


um dia, quando se sentiam muito sozinhas e com saudades de sua infância, as três Marias foram fuçar em um baú de histórias que pertencia a sua avó, transladada em estrela já fazia algum tempo. de lá tiraram várias que contavam peripécias de heróis vencendo perigos e conquistando amores, histórias de terror, de assombração e de muitos medos, histórias de amizade sincera que dura a vida inteira. mas não encontraram nenhuma que pudesse acalmar seus corações que sofriam de uma angústia que não tinha explicação. foi ai que resolveram construir uma avó para lhes contar uma história. juntaram barro, sementes, lembranças de suas avós e mais as lembranças das avós de boa parte das crianças da platéia. essa foi a hora "happening" e todos queriam compartilhar o carinho que cada um sentia de sua avó, todos queriam contribuir na construção daquela história. no palco novamente, as três Marias modelaram Yepá, avó do Mundo. e fez-se a mágica. surgiu a avó mais velha, a primeira avó do mundo! a história que Yepá conta para as três Marias é uma lenda indígena, ‘O nascimento da noite’. ela, a avó do mundo, é a personagem principal e se torna o centro do espetáculo onde cada aparição sua é um novo deslumbramento: nasce gigantesca, diminui de tamanho, vira luz, vira sombra, e por fim volta ao pó da terra e às lembranças de quem ali a história experenciava.



os recursos cênicos dessa peça foram de uma simplicidade que me surpreendeu, pois os efeitos tiveram resultados muito interessantes e até requintados do ponto de vista da estética teatral. bonecos de vários tamanhos e materiais foram criando vida no palco e assumindo seus papéis na peça. lençóis, panos e colheres de pau foram tomando formas de personagens e cenário a fim de compor os episódios da história. o jogo de luzes potencializou o clima mágico e o teatro de sombra foi trabalhado de uma forma muito orgânica em toda a peça, recriando o universo nebuloso das lendas, da fantasia e das histórias encantadas. a poesia estava em toda parte: na linguagem verbal do texto, na sonoplastia musical, nas imagens produzidas em cena, nos corpos e gestos delicados e precisos das atrizes, nas pedrinhas batendo na lata pra fazer o som de água, nas pinturas rupestres do vestido de Yepá, nas mantas bordadas que compunham o cenário, nas luzes, na escuridão, nas carinhas das crianças que assistiam assombradas e maravilhadas ao mesmo tempo.


a mensagem da peça é de difícil verbalização. em cada pessoa que assiste ela acontece de forma diferente, a partir de cada experiência vivida e sofrida. sabemos onde ela nos toca: no profundo oculto de nossa herança cultural humana, lugar que entendemos hoje como memória coletiva guardada no coração de cada indivíduo. nos tempos primórdios da nossa espécie [divago eu em meio a desvarios] a escola era a própria natureza que existia ao nosso redor e dentro de nós mesmos. o professor era um indivíduo da comunidade, aquele que conhecia mais sobre a vida, contava suas experiências com sabedoria, mantinha um contato místico com seus ancestrais, cultivava a tradição e a identidade cultural de seu povo e narrava histórias maravilhosas que foram surgindo sei lá de onde: talvez da curiosidade do ser humano em descortinar segredos, ou do desejo de explicar onde e como as coisas surgiram, quem sabe nasceu da magia do próprio intelecto humano se descobrindo, ou ainda da vontade de expandir o que se vê, escuta e sente. as lições de casa era a aplicação de todos esses ensinamentos na vida prática, no cotidiano, entre deveres cumpridos e diversões permanentes. o recreio era o tempo todo, quando se trabalhava, quando se aprendia, quando se brincava, até quando se dormia e sonhava com esse universo oculto que recheava de mistério a beleza de se estar vivo, mesmo em meio a tantos perigos e luta constante pela sobrevivência. essa peça dá uma saudade da minha vó Ana, das histórias que me contava da bahia e também de tudo o que eu nunca vi: essa bagagem cultural de milênios, que carrego em memória dentro de mim!


o grupo Aldeia, teatro de bonecos faz uma pesquisa profunda sobre os mitos e lendas do nosso folclore. busca nas raízes de nossa cultura oral os elementos mágicos para construír suas obras. iniciou contando histórias em várias cidades da região de Terras Altas da Serra, visitando escolas, bibliotecas e também distribuindo livros. o grupo já gravou um cd onde narra quatro lendas indígenas. a continuidade desse projeto intitulado Laços e Lendas segue com o espetáculo Yepá, avó do Mundo.

muitos são os profissionais que trabalham nessa obra: 
no elenco: ana cristina fernandes, débora mazochi e suzana louzada.
direção: débora mazochi e bruno godinho
idéia original: débora mazochi e suzana louzada
texto teatral e adaptação da lenda: débora mazochi e silvino fernandes.
cenário e adereços: ana cristina fernandes e suzana louzada

entre outros muitos.


visite o site oficial do grupo e descubra outras de suas pesquisas e façanhas que combinam arte e vida: 


essa peça, classificada como infantil, serve para qualquer idade. desde o primeiro ano de vida até os milênios que já somam a humanidade.

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depois de tantos devaneios, concluo o texto com um poema de oswald de andrade:

"aprendi com meu filho de dez anos
 que a poesia
 é a descoberta das coisas que eu nunca vi."


evoé!

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