23.5.09

minha despedida a mario benedetti


rené portocarrero (1912-1985)  é um dos principais artístas plásticos de cuba no sec. XX.  
:: obra: "mujer de perfil" :: 
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***

HOMEM QUE MIRA SEM SEUS ÓCULOS
mario benedetti
(tradução: patrícia mc quade)

Neste instante o mundo é apenas
          um vitral confuso
as cores se invadem umas nas outras
e as fronteiras entre coisa e coisa
         entre terra e céu
        entre árvore e pássaro
estão desfiadas e indecisas

o futuro é assim um caleidoscópio de dúvidas
e ao menor movimento o lindo prognóstico
         se transforma em mal augúrio
os carrascos se jubilam até parecer
         invencíveis e sólidos
e para mim que não sou lázaro
         a derrota oprime como um sudário

as boas mulheres desta vida
        se justapõem se simulam se entremesclam
a que apostou seu coração por me amar
        com uma fidelidade abrumadora
a que me marcou a brasa
        na cavernamparo de seu sexo
a que foi cúmplice do meu silêncio
        e compreendia como os anjos
a que imprevistamente me deu uma mão
         na sombra e depois a outra mão
a que me rendeu com um só argumento de seus olhos
         mas se curvou sincera na amizade
a que descobriu em mim o melhor de mim mesmo
           e linda e terna e boa amou meu amor

as paisagens e as esquinas
os horizontes e as catedrais
        que fui colecionando
         através dos anos e os enganos
se confundem no guia turístico presunçoso
de fábula narrada aos amigos
e nesse delírio de vaidades e nostalgias
é difícil saber o que é monastério e o que é blasfêmia
        o que é van gogh e o que manjubas defumadas
        o que é mosaico e o que água suja veneziana
        o que é aconcágua e o que é cogumelo

também os próximos se amontoam
        crápulas e benditos
        santos e indiferentes e traidores
e inscrevem na minha infância pessoal
tantas frustrações e rancores
que não posso distinguir claramente
         a lua do rio
        nem a palha do grão

mas chega o momento em que aquele recupera
        por fim seus óculos
e de imediato o mundo adquire
        uma tolerável nitidez

o futuro luze então árduo
         mas também radiante

os carrascos se apequenam até
        recuperar sua condição de baratas
de todas as mulheres uma delas
        dá um passo a frente
        e se desprende das outras
        que no entanto não se esfumaçam
das cidades viajadas surgem
        com fervor e claridade
        quatro ou cinco rostos decisivos
        que quase nunca são grandeloquentes

certa menina brincando com seu cão
         numa rua deserta de genebra
um sábio negro de alabama que explicava
         por que sua pele era absolutamente branca
ela fitzgerald cantando
          diante uma platéia quase vazia
         em um teatro moribundo de florencia
e o guajiro do oriente
         que disse ter um portocarrero
         e era uma lata de biscoitos
          desenhada pelo pintor

do ramalhete de próximos posso extrair
        sem dificuldades
uma larga noite paterna uma derradeira conversa
        síntese de vida
        com a morte rondando no corredor
o veterano que transmitia
        sem egoísmo e sem prazer
         alguns de seus códigos de sensível
o companheiro que pensou longamente na cela
        e sofreu longamente o cepo
         e não delatou ninguém
o homem político que em um ato
         de incalculável amor
         disse a um milhão de pessoas a culpa é minha
         e o povo começou a sussurrar fidel fidel
          e o sussurro se converteu em onda clamorosa
        que o abraçou e continuam a abraçá-lo ainda
essa gente a pura gente
        essa gente bonachona à moda oriental
        que na avenida gritou tiranos tremam
        até que chegou ao mesmíssimo
         tremor do tirano

e a moça e o moço desconhecidos
        que se desprenderam um pouco de si mesmos
        para estender suas mãos e dizer-me
        adiante e valor

decididamente
não vou perder mais meu óculos

por um imperdoável desenfoque
pode alguém cometer gravíssimos enganos.

***

tenho acompanhado de perto as notícias que circundam a morte de mario benedetti. muitos foram os blogs que manifestaram o luto pela perda desse poeta tão importante na cultura e na política do uruguay. como leitora de poesia latinoamericana me sinto comovida com a repercursão de seus versos desde o funesto evento anunciado pela imprensa sábado passado. tomara que não seja apenas um fogo de palha e o calor das leituras poéticas não esfriem com a primeira rajada de vento do norte. hoje já faz uma semana que ele se foi. não vou me extender aqui em apresentá-lo, seus versos, contos, novelas, romances, ensaios já contam dele por mim. cito seus poemas em especial, eles falam de política, ditadura, amor, compaixão, solidariedade, liberdade... sem distinção entre as fronteiras de um tema a outro. costumo chamar de passarinhos a esses poetas que nos entoam seu canto e que nos ajudam a entender esse mundo tão contraditório. acho graça ouvir dizer que a poesia é que é contraditória e de difícil entendimento. o que é contraditório e de difícil entendimento, para mim, é essa realidade social, política e econômica do mundo civilizado em busca constante pelo capital, e que em nome da ordem e da paz mundial, se faz guerra, se mata, se tortura. em nome dos interesses particulares, se rouba, se infringe, se mente, e também se mata. na literatura eu me encontro, nas notícias diárias jornalísticas eu me perco. mas não deixo de ler nem uma nem outra. e busco nesse labirinto de emoções um olhar poético e politizado das coisas para me distinguir da massa de brasileiros que não se reconhecem tampouco como latinoamericanos :: quanta ingenuidade e falta de cumplicidade cultural e política! sem falar da falta de noção histórica.

mais esse passarinho se foi.
gostaria que essa perda fizesse, principalmente a nós brasileiros, pensar em como o autoritarismo exacerbado (qqr tipo de ditadura ou coerção através do poder) destrói as manifestações políticas que incrementam de criatividade e criticidade a vida dos cidadãos do mundo.

que seus versos continuem a repercutir nos quatros cantos da américa latina e que reforcem o nosso voo, outros pássaros, com suas penas vividas e seu canto que se fez eterno. para que a partir disso possamos abrir as nossas asas sobre a total liberdade de compartilhar igualmente o sonho de uma américa latina mais justa socialmente, promissora em nossa identidade cultural e com autônomia política e econômica.

quem disse que o sonho acabou?
nos versos de benedetti ele ainda pulsa.

laroiê, benedetti!
nós aqui cuidamos de seus versos.

***

(tradução livre do poema por patrícia mc quade :: para quem se interessar pelo poema em espanhol, clique aqui)

bibliografia lida de forma carinhosa e intensa: 
BENEDETTI, Mario. Poemas de otros. Buenos Aires: Editorial Nueva Imagen, 1989.

***
epígrafe do livro citado:

Mire la calle.
¿Cómo puede usted ser
indiferente a ese gran río
de huesos, a ese gran río
de sueños, a ese gran río
de sangre, a ese gran río?
                                                                         (Nicolás Guillén)

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